Que bom que é descobrir um filme que, realmente, se interessa pela literatura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Agosto), com o título 'Cinema e sensualidade'.
Vivemos um tempo em que os filmes nascem apenas porque alguém se lembra de usar um telemóvel (em movimentos agitados!) para registar qualquer coisa banalmente pitoresca... É um fenómeno da televisão e da Net, mas também do cinema profissional. Daí o bálsamo redentor que é A Vida de uma Mulher, de Stéphane Brizé, adaptando o romance Une Vie (publicado em 1883), de Guy de Maupassant.
Um velho preconceito poderá fazer pensar que se trata de enaltecer o filme “através” do objecto literário que o inspira. Nada mais errado — basta observar a avalancha de disparates televisivos que se vão fazendo em nome de muitas obras-primas literárias. Acontece que Brizé começa por integrar uma dimensão essencial da herança de Maupassant. A saber: a percepção das convulsões sociais (e, neste caso, muito em particular, dos dramas conjugais) através de uma permanente atenção à vibração dos corpos e olhares — e se isso se escreve, também se filma.
Tal como em A Lei do Mercado (2015), Brizé aplica um método que, à falta de melhor, apetece chamar sensual. Deparamos com uma ligação calorosa, um verdadeiro contrato expressivo estabelecido entre o olhar da câmara e os movimentos dos actores — tudo parece acontecer num ambiente improvisado, quase documental, mas a acumulação dos gestos e do tempo instala a sensação de uma tragédia suspensa.
Pressentimos, assim, a herança do mestre Max Ophüls que, aliás, adaptou alguns contos de Maupassant em O Prazer (1952). Tal como Ophüls, Brizé constrói os seus filmes a partir de uma elaborada discussão do próprio conceito de personagem social — assim acontecia em A Lei do Mercado, protagonizado por Vincent Lindon, assim volta a acontecer em A Vida de uma Mulher, com a admirável Judith Chemla. Em resumo: uma preciosidade cinematográfica.