Como encenar a vida de um Papa em filme? Em boa verdade, a questão é a mesma para qualquer personagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Maio), com o título 'Cinema ou televisão?'.
A associação do cinema aos grandes eventos mediáticos constitui um estranho e paradoxal fenómeno. Por um lado, ao longo das últimas décadas, as versões mais grosseiras do marketing impuseram uma visão do cinema dominada pela agitação global dos “blockbusters”. Por outro lado, de vez em quando, os mercados parecem acreditar que, apesar dos perniciosos efeitos desse marketing, ainda é possível promover um filme apenas porque nos vem falar de algo ou alguém que está em todos os ecrãs de televisão.
Televisão, justamente. Mais do que de marketing, é de formatação televisiva que devemos falar. O filme de Daniele Luchetti, Francisco, o Papa do Povo, constitui um exemplo revelador. Estamos, afinal, perante um formato de “compromisso” entre a longa-metragem de cinema e a série de televisão (assim foi lançado, aliás, em Itália, em 2015 e 2017). Bem sabemos que essa associação também deu origem a alguns prodigiosos objectos vistos nos pequenos e grandes ecrãs — recorde-se o exemplo pioneiro de Ingmar Bergman, com Cenas da Vida Conjugal (1973). Não está em causa, por isso, a existência e, sobretudo, a diversificação dos laços cinema/televisão. Acontece que, por vezes, tal relação se esgota no academismo da dramaturgia “ilustrativa” que encontramos em Francisco, o Papa do Povo.
Podemos recolher, aqui, alguma informação pertinente, em especial sobre as formas de resistência de Jorge Bergoglio às arbitrariedades da ditadura militar na Argentina? Talvez. Em todo o caso, fica a sensação de que o cinema se demitiu dos seus poderes narrativos. Os resultados são tanto mais frustrantes quanto, através de filmes como O Meu Irmão É Filho Único (2007) e A Nossa Vida (2010), Luchetti é um dos mais talentosos representantes da renovação realista da actual produção italiana.