sexta-feira, abril 14, 2017

Mizoguchi x 9

KENJI MIZOGUCHI
(1898-1956)
O lançamento de nove filmes do japonês Kenji Mizoguchi no circuito comercial português vem confirmar que a reposição (por vezes a estreia absoluta) de grandes referências clássicas da história do cinema voltou a ser um dado essencial na dinâmica das salas escuras, com naturais reflexos na diversidade dos circuitos de DVD e nos próprios canais televisivos.
CONTOS DA LUA VAGA
(1953)
A exibição dos filmes de Mizoguchi iniciou-se na quinta-feira, em Lisboa (Nimas), com Contos da Lua Vaga (1953), Os Amantes Crucificados (1954) e A Mulher de Quem se Fala (1954), este último nunca lançado no circuito comercial português. Numa segunda fase, a partir de 11 de Maio, serão apresentadas mais duas reposições — O Conto dos Crisântemos Tardios (1939) e Rua da Vergonha (1956) —, a par dos comercialmente inéditos Festa em Gion (1953), A Senhora Oyu (1951), O Intendente Sansho (1954), e A Imperatriz Yang Kwei Fei (1955). A partir dessa mesma data, o ciclo inicia-se no Porto (Teatro Municipal do Campo Alegre), seguindo-se, entre outras cidades, Coimbra, Braga, Setúbal e Figueira da Foz.
Durante muito tempo, e a par de Akira Kurosawa (1910-1998), Mizoguchi funcionou como símbolo universal da própria “ideia” de cinema japonês. Para várias gerações, Contos da Lua Vaga foi mesmo um clássico absoluto, capaz de condensar um ideal de pureza formal. Basta recordar a sua posição na prestigiada lista dos “melhor filmes de sempre”, promovida de dez em dez anos pela revista Sight & Sound, do British Film Institute: em 1962, surgiu em quarto lugar, “ex-aequo” com Greed (1924), de Eric von Stroheim. De então para cá, embora tendo vindo a descer de posição, nunca abandonou o Top 50; na votação de 2012, surge na 50ª posição (o título japonês mais votado é Viagem a Tóquio, também uma produção com data de 1953, assinada por Yasujiro Ozu).

O efeito realista

A paixão por um realismo à flor da pele será a maneira mais linear, necessariamente redutora, de definir o universo de Mizoguchi. Desde O Contos dos Crisântemos Tardios, um drama do meio teatral em finais do séc. XIX, até A Imperatriz Yang Kwei Fei, nos bastidores do poder imperial no séc. VIII, deparamos com uma obsessão do detalhe apostada em intensificar, precisamente, o efeito realista.
A MULHER DE QUEM SE FALA
(1954)
Títulos como os citados, ou ainda O Intendente Sansho, centrado em conflitos do período feudal, terão contribuído para que, por vezes, Mizoguchi seja identificado como um especialista em “reconstituições” históricas. Na verdade, muito para lá da teatralidade dos ambientes (ou melhor, através dessa teatralidade), aquilo que o interessa é sempre, em última instância, a rede de forças e desejos que aproxima ou afasta as personagens, expondo a sua relação paradoxal com os valores sociais de cada momento.
A Mulher de Quem se Fala, porventura a maior revelação deste ciclo, pode servir de modelo desse ziguezague. No seu centro está uma jovem que, na sequência de uma tentativa de suicídio, se recolhe junto da mãe, proprietária de uma casa de gueixas. O desassombro (realista, justamente) com que Mizoguchi expõe o quotidiano de um bordel funciona como uma poderosa maquinaria dramática, obviamente dispensando qualquer visão “poética”, muito menos “turística”, típica de alguns olhares ocidentais. Há óbvias relações com a austera visão da prostituição que encontramos em Rua da Vergonha, título final da filmografia do cineasta.
A crueza dos ambientes e relações não exclui, antes parece atrair o assombramento de algumas histórias de Mizoguchi (observe-se o fantasma que circula por Contos da Lua Vaga). No limite, a vertigem do invisível nasce do realismo das relações, conferindo-lhe a dimensão de um genuíno autor trágico.