O falecimento de Jonathan Demme faz-nos rever e revalorizar a criatividade de um independente dentro de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Abril), com o título 'Um autor de "série B"'.
Quando situamos Jonathan Demme nas convulsões do cinema americano depois da idade de ouro do classicismo, dir-se-ia que ele não pertence a nenhum espaço específico. Por um lado, surgiu depois da geração dos que, como Arthur Penn, Sidney Lumet ou John Frankenheimer, começaram a sua formação nas produções televisivas e, de facto, transfiguraram a paisagem estética de Hollywood; por outro lado, é verdade que a sua afirmação é paralela à de Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese (cujas carreiras também estão ligadas ao produtor Roger Corman), mas a sua obra não está marcada pelo mesmo tipo de unidade temática ou experimental que distingue os autores de Apocalypse Now e O Touro Enraivecido. Podemos, talvez, resumir a sua singularidade considerando que o seu trabalho nunca alienou um espírito de “série B” obviamente devedor da aprendizagem (de escrita e realização) sob a égide de Corman.
Em 2008, Demme dirigiu um filme sublime que, a meu ver, pode condensar as suas qualidades. Tinha, curiosamente, argumento de Jenny Lumet, filha de Sidney Lumet. Chamava-se O Casamento de Rachel e nele se contava “apenas” a história de uma jovem que, na sequência de um difícil processo clínico de desintoxicação, regressava à família para assistir ao casamento da irmã. Centrado naquela que me parece (de muito longe) a melhor interpretação de Anne Hathaway, o filme distinguia-se pela perturbante intensidade das suas emoções, registadas com a “ligeireza” de um documentário familiar. Dito de outro modo: Demme possuía esse gosto do paradoxo, inerente à “série B”, em que as coisas mais banais podem envolver o destino do mundo. Será preciso lembrar que, nesta perspectiva, O Silêncio dos Inocentes, é também um guia essencial para a estranha familiaridade dos nossos pecados?