Ornamento & Crime, de Rodrigo Areias, reinventa o cinema "noir" através de um filtro português — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março), com o título 'Memórias cinéfilas em português'.
Quando falamos da nossa relação com as memórias cinéfilas, importa evitarmos qualquer saudosismo acomodado. De facto, o mundo à nossa volta aconselha mesmo a serenidade de um militante cepticismo. Vivemos num tempo em que apenas as linguagens do futebol — incluindo, precisamente, as suas memórias — são mediatizadas de forma automática (e automaticamente televisiva), enquanto as nossas relações com as imagens de outros domínios são cada vez mais fracas na paisagem audiovisual.
Daí que valha a pena regressar à pergunta básica. A saber: de que falamos quando falamos de memórias cinéfilas? É uma pergunta que, em boa verdade, acompanha a história dos filmes desde os tempos heróicos do Cinema Novo e, muito em particular, da Nova Vaga francesa. É também a pergunta que, agora, encontramos reformulada num filme português: Ornamento & Crime, de Rodrigo Areias.
Dir-se-ia que podemos definir a sua árvore genealógica recuando até 1965, evocando o esplendoroso Alphaville, de Jean-Luc Godard. Que acontecia aí? Uma revisitação da tradição do policial clássico de Hollywood — mais exactamente, do cinema “noir” —, com Eddie Constantine a assumir-se como herdeiro iconográfico e simbólico de Humphrey Bogart.
Agora, em Ornamento & Crime, há também um detective de olhar desencantado e gestos geométricos (interpretado por Vítor Correia) e um labirinto de crimes, homens implacáveis e mulheres fatais que, a pouco e pouco, tende para a mais pura abstracção estética, baralhando as coordenadas espaciais e temporais. Alphaville era rodado em Paris e projectava-nos num cruel futuro distópico; Ornamento & Crime vagueia por cenários de Guimarães (marcados pelo trabalho do arquitecto Fernando Távora), falando-nos de uma terra de exausto romantismo, ausente dos mapas conhecidos.
Eis um fenómeno realmente transversal: o cinema contemporâneo colhe nas memórias dos clássicos os sinais que lhe permitem repensar a sua própria actualidade, escapando a qualquer determinismo televisivo. Lembremos que essa é, afinal, uma atitude que marca títulos tão radicais como Cosmopolis (David Cronenberg, 2012) Vício Intrínseco (Paul Thomas Anderson, 2015) ou Aliados (Robert Zemeckis, 2016). Muito para além de qualquer atitude copista, o que tais filmes procuram é restabelecer alguma ligação do espectador com as marcas gloriosas do património cinéfilo, reinventando essas marcas a partir das sensibilidades e perplexidades do presente. Ornamento & Crime participa dessa lógica, falando e pensando em português.