Um filme italiano sobre uma mulher albanesa: Virgem Prometida é um exemplo modelar de um cinema que não abdicou do realismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Outubro), com o título 'Um drama feminino vivido entre Albânia e Itália'.
Não é fácil explicar o que acontece num filme como Virgem Prometida, realizado por Laura Bispuri, cineasta italiana que aqui se estreia na longa-metragem. Desde logo porque importa preservar o direito do espectador descobrir os “segredos” que o habitam seguindo as suas próprias peripécias, não através deste ou de qualquer outro texto.
Lembremos, por isso, o essencial (que não envolve qualquer “revelação” abusiva, já que corresponde à informação disponível no próprio trailer do filme). A “virgem” a que o título se refere é uma mulher, relativamente jovem, compelida a mudar o seu comportamento, “transformando-se” num homem. Daí a pergunta que pode surgir: estamos, então, perante uma história de transgénero, em que um ser humano de determinado género contém, em si, como uma espécie de identidade escondida, outro género? Nada disso, já que tudo acontece a partir de uma contundente imposição social: esta é “apenas” a história de Hana que é forçada a assumir-se como Mark.
A marca decisiva desta transformação, sublinhe-se, não está em qualquer movimento de consciência, muito menos em qualquer impulso hedonista, mas sim no seu carácter compulsivo. Estamos numa zona remota das montanhas da Albânia em que o peso de tradições primitivas não só delimita os comportamentos e direitos das mulheres em função da mais absoluta autoridade masculina, como as obriga, quase sempre, a casarem-se com homens que não escolheram (muitas vezes, nem sequer conhecem). Quando alguma delas consegue escapar a tal destino, deve sacrificar a sua condição feminina e jurar virgindade eterna (Vergine Giurata é o título original italiano). Mark é, assim, o homem que “nasce” no lugar de Hana, a partir do momento em que lhe foi retirado o direito de existir como mulher.
A verdade mais íntima
Para a personagem central, tal “sacrifício” é sustentado durante cerca de uma década, até que decide partir para Itália, ao encontro da prima com quem partilhara infância e adolescência. A intensidade afectiva do filme de Laura Bispuri (baseado num romance de Elvira Dones) nasce também do contraste cenográfico que assim se estabelece: Mark deixou para trás o frio gélido da sua região albanesa para tentar integrar-se numa vida urbana totalmente diferente; ao mesmo tempo, tudo se passa como se, através da sua presença física, os espaços italianos ecoassem a pesada herança de uma ruralidade asfixiante. Dito de outro modo: trata-se de saber se, por baixo da máscara que é Mark, ainda resta algo de Hana.
Na sua transparência emocional, Virgem Prometida é também um filme sobre um drama infinitamente complexo: quando alguém é despojado da sua identidade sexual, como sobreviver? Ou seja: como estabelecer relações com os outros a partir da sua verdade mais íntima?
Compreende-se, por isso, o desafio imenso que a personagem de Hana/Mark terá representado para Alba Rohrwacher (que conhecemos, por exemplo, de O País das Maravilhas, filme de 2014 realizado por sua irmã, Alice Rohrwacher). Não se tratava tanto de interpretar uma mulher que “finge” ser um homem, mas mais de colocar em cena a perturbação visceral de alguém que foi educada para se “esquecer” de quem é.
Estamos, enfim, perante o exemplo invulgar de um filme que, através do realismo de lugares e objectos, nos convoca para a descoberta de uma realidade arquitectada, em nome da tradição e da “pureza”, contra as coisas palpáveis do mundo. É um filme italiano que, curiosamente, foi gerado a partir de uma invulgar aliança de produção: para além da Itália, estão envolvidos na sua gestação financiamentos e contributos provenientes de Albânia, Kosovo, Suíça, Alemanha e França.