O melodrama italiano regressa, em grande, com assinatura de Paolo Virzì — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Setembro), com o título 'Na intimidade da loucura'.
Onde está a grande tradição melodramática italiana? Não necessariamente a dos mestres que, muito justamente, surgem citados em qualquer história da modernidade (Rossellini, Antonioni, Visconti, etc.), mas a dos pequenos e admiráveis artesãos como Luigi Comencini, Mario Monicelli ou Dino Risi? Foram eles, afinal, que ao longo das décadas souberam manter vivo um cinema que, com ternura e crueldade, nunca desistiu de olhar para as gentes e histórias do seu país. Pois bem, podemos afirmar que Paolo Virzì (n. 1964) é, por certo, um dos seus mais legítimos e talentosos herdeiros. O seu filme mais recente, Loucamente, aí está para o demonstrar.
E não seria fácil lidar com o universo da loucura que Virzì agora retrata. Sobretudo porque, não poucas vezes, esse universo surge enquadrado por um “simbolismo” fácil, tendencialmente irresponsável, em que a loucura surge reduzida à condição de bandeira de comportamentos “alternativos”. Não é isso que aqui encontramos: a história de Beatrice e Donatella desenvolve-se como uma saga de bizarras cumplicidades em que, afinal, todas as certezas da normalidade são, de algum modo, testadas.
Internadas numa instituição psiquiátrica da Toscânia, as duas mulheres vão protagonizar uma fuga que, ainda que começando de forma ligeira, quase burlesca, se vai transfigurando numa teia de perturbantes confrontos: Beatrice quer recuperar os seus privilégios sociais e provar que o seu divórcio foi um equívoco para o qual não contribuiu; Donatella, marcada por uma existência mais ou menos marginal, cuja violência adivinhamos, não desiste de encontrar o filho que está a viver numa família adoptiva.
Loucamente consegue conciliar a vertigem da acção com a precisão da crónica social. Por um lado, as atribulações das protagonistas (iludindo a vigilância dos médicos, roubando um automóvel, fugindo de um restaurante de luxo depois de uma refeição, etc.) geram um envolvente “suspense” emocional; por outro lado, os seus ziguezagues expõem as leis mais ou menos ocultas de um mundo em que responsabilidade individual e harmonia colectiva dialogam de formas inesperadas e desafiantes. Observe-se, em especial, a intensidade e delicadeza das duas sequências em que Donatella (e também o espectador) descobre o seu filho.
Desafiando as aparências
Uma feliz coincidência faz com que, há poucos dias, tenha chegado ao mercado o DVD de Os Monstros (ed. Alambique), um filme que pode servir de referência simbólica para o trabalho de Virzì. Trata-se de uma produção de 1963, dirigida por Dino Risi, que propõe uma galeria de personagem “monstruosas” através de várias histórias autónomas (era a época de sucesso dos chamados “filmes por episódios”). É certo que, neste caso, o registo é abertamente cómico; seja como for, estamos perante a mesma acutilância crítica de um cinema capaz de desafiar as aparências sociais e suas hipocrisias, aqui sustentado pelas transfigurações de admiráveis actores como Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi.
Aliás, importa referir que Virzì é também um notável director de actores, neste caso, sobretudo, de duas actrizes em estado de graça: nos papéis de Beatrice e Donatella, respectivamente, Valeria Bruni Tedeschi e Micaela Ramazzotti (mulher do realizador) são brilhantes na representação dessa intimidade da loucura que as faz percorrer um labirinto de muitos rostos, ameaças e revelações.
Encontramos, assim, uma visão que já estava na anterior realização de Virzì, Capital Humano (2013), também disponível em DVD (ed. Films4You). O realizador sabe fazer coexistir as singularidades das suas personagens com uma subtil amostragem das contradições sociais, sejam elas de natureza económica ou simbólica. Em tempos de tão fácil celebração dos artificialismos dos “efeitos especiais”, Loucamente é um objecto habitado por gente viva e contraditória, em última instância relançando uma tradição realista que nunca foi estranha às leis do drama e às emoções do melodrama. Moral da história: não esqueçamos a permanente capacidade de reinvenção do cinema italiano.