Donald Trump no programa de Jimmy Fallon |
De que falamos quando falamos de Donald Trump? E, sobretudo, de que fala a televisão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Outubro).
A escolha de Hillary Clinton ou Donald Trump está longe de ser uma questão interna dos EUA — o desenlace da sua corrida eleitoral afectará, de uma maneira ou de outra, a geopolítica planetária. Prova esclarecedora da gravidade do assunto: esta sexta-feira, o USA Today (o jornal de maior circulação nos EUA) quebrou a tradição de neutralidade face às eleições presidenciais (desde a sua fundação em 1982) e publicou um texto em que o respectivo conselho editorial explica porque considera Trump “inadequado para a presidência”.
Neste processo em que mesmo os mais distraídos profissionais dos meios de comunicação se vêem forçados a reconhecer que, afinal, têm uma consciência, as recentes declarações de Stephen Colbert sobre Trump traduzem um infeliz sintoma. Porventura influenciado pelas polémicas em torno de Jimmy Fallon, apresentador de outro “talk show” televisivo que foi acusado de “brandura” face ao perfil demagógico de Trump, Colbert declarou publicamente (em entrevista à rádio SiriusXM) que o candidato republicano é um “cobarde” que não será capaz de “regressar” ao seu The Late Show, na CBS (onde esteve em finais de 2015).
Mesmo não esquecendo que Colbert é um dos talentos revelados durante o consulado de Jon Stewart a apresentar The Daily Show (Comedy Central), há qualquer coisa de patético nas suas palavras. A começar pelo facto de, implicitamente, reduzir o funcionamento da televisão a uma arena em que os políticos, quais gladiadores perante uma multidão em histeria, só se identificam por dois modelos de comportamento: ou se envolvem num “corajoso” combate em que vão coleccionando vítimas e troféus... ou são “cobardes”.
O mais grave é o facto de Colbert fugir a qualquer reflexão sobre a efectiva responsabilidade do espaço televisivo na definição e prática da política contemporânea. Ao reduzir Trump à sua “cobardia” (retrato com o qual até poderemos concordar), Colbert mascara meses e meses de muitas e variadas performances televisivas em que Trump foi tratado apenas como figurante burlesco de anedotas mais ou menos descartáveis.
O que Colbert recusa enfrentar é o facto de não ser possível compreender o fenómeno sem considerar o contributo decisivo de alguns discursos televisivos na invenção e difusão da personagem política de Trump. Esse é, aliás, um drama nuclear das nossas sociedades: muito para além da “coragem” ou da “cobardia” seja de quem for, onde está um pensamento que arrisque enfrentar a dimensão televisiva de tudo (mas mesmo tudo) que, hoje em dia, acontece no universo da política?
Um grande filme de e com Warren Beatty, Bulworth (1998), pode servir de companheiro de trabalho para tal reflexão. Sem esquecer, claro, que Beatty surge quase sempre televisivamente definido através das memórias da sua vida amorosa, não pelo facto de ser, não apenas um notável actor, mas também um extraordinário cineasta.