terça-feira, julho 05, 2016

O "álbum visual" de Beyoncé

Lemonade, de Beyoncé, é um magnífico objecto de música que se oferece também como prodigioso "álbum visual" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Julho), com o título 'Ser e não ser segundo Beyoncé'.

Em tempos de militante menosprezo pela riqueza da cultural dos Estados Unidos da América (passado e presente), o filme Lemonade, produzido por Beyoncé para acompanhar o seu álbum homónimo, passou de forma discreta nos canais TVCine. O quase silêncio em torno da sua difusão é revelador do afunilamento de um marketing a que parecem faltar ideias sobre a procura dos espectadores (regulares ou potenciais).
Militância por militância, peço licença para proclamar que se trata de uma das obras-primas do audiovisual de 2016. Filme de cinema? Programa de televisão? Em boa verdade, não sei responder (mesmo se, na origem, foi difundido pela HBO): eis um objecto capaz de desafiar modelos e certezas, abrindo caminho a novas relações com o espectador.
Digamos que Lemonade começa por ser um “especial” de televisão que, de forma admiravelmente livre, integra e reinventa algumas matrizes dos telediscos — a sua designação é, aliás, sugestiva: “um álbum visual”. Ao mesmo tempo, há nele o impulso cinematográfico de quem sabe criar uma narrativa eminentemente pessoal, cruzando-a com as convulsões da história dos afro-americanos.
Lemonade combina as mais variadas referências, desde a poesia de Warsan Shire (nascida no Quénia, em 1988, residente em Londres) até às imagens de jovens afro-americanos (Trayvon Martin, Michael Brown e Eric Garner) cujas mortes abalaram a sociedade americana durante a presidência de Barack Obama. A conjugação de tais referências não decorre de qualquer inventário “simbólico”, antes de um desejo de celebração narrativa em que a própria Beyoncé, transfigurado-se de musa do R&B a lady do século XIX, emerge como a primeira matéria viva — contar a nossa história é, afinal, reconhecermos que podemos ser outra personagem além daquela que imaginamos ou outros nos atribuíram.
Para concretizar o projecto, Beyoncé contou com a colaboração de um colectivo de sete realizadores, incluindo o sueco Jonas Akerlund e o americano Mark Romanek (responsáveis por alguns momentos fulcrais da história moderna das imagens e da música, em particular através dos seus trabalhos com Madonna, David Bowie ou Rolling Stones). Essa direcção partilhada favorece a sensação de estarmos a assistir a um ritual colectivo em que as imagens surgem menos como uma “ilustração” e mais como testemunhos vivos de uma procura incessante do nosso lugar no mundo, suas razões e enigmas [video: fragmento de Sorry].
Alguma imprensa pouco interessada na beleza de Lemonade especulou sobre a possibilidade de as palavras que falam de uma traição masculina serem reflexo de uma ruptura iminente no casamento de Beyoncé e Jay Z (que, aliás, também surge numa breve sequência). Como sempre, importa separar as águas: mesmo que tal paralelismo possa ter algum fundamento, Lemonade nada tem a ver com a tristeza moral do mundo dos “famosos”. Esperemos que o mercado encontre outras maneiras de o mostrar mais e melhor.