[ed. Cahiers du Cinéma, 2001] |
Será que a a nossa identidade nacional se define apenas através do futebol? Como é que a televisão nos educa para pensarmos essa identidade? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Junho).
Os discursos dominantes sobre televisão tendem a recalcar o seu papel como instrumento de educação. A simples possibilidade de analisar o espaço televisivo como factor educacional é muitas vezes achincalhada, insinuando-se que quem coloca tal questão só estaria satisfeito se os noticiários fossem feitos com dissertações sobre a montagem das atracções de Eisenstein ou o primado das linguagens segundo Wittgenstein...
Infelizmente, se olharmos com atenção e espírito crítico a história da televisão em democracia, a caricatura não é exagerada. Sobretudo porque nos permite compreender que tais insinuações têm como efeito principal o recalcamento da educação que, de facto, todos os dias, nos é inculcada. Que educação? Por exemplo, a que leva a definir o patriotismo através do futebol: por estes dias, beber cervejas e berrar para as câmaras de televisão parecem ser as únicas actividades patrióticas que nos restam.
Não se trata, entenda-se, de reduzir o problema à histeria audiovisual dos últimos meses, nem sequer ao facto de as suas narrativas serem maioritariamente determinadas pelo mercado publicitário. Estão em jogo valores muito antigos, sinalizados desde os anos 60, quando um cineasta como Roberto Rossellini (1906-1977) encarou a televisão como uma “arte nascente”, capaz de reconverter todas as relações dos espectadores com o passado e o saber da humanidade (em 2001, o crítico e ensaísta italiano Adriano Aprà dedicou a essa faceta da obra rosselliniana um livro antológico, significativamente intitulado “A Televisão como Utopia”).
Como podemos viver, então, quando somos televisivamente educados para viver apenas através do futebol? A pergunta é imperfeita, quanto mais não seja porque, mesmo no contexto português, há mais mundos para além do futebol (e outras vias, mais inteligentes, para lidar com esse espectáculo admirável que o futebol televisivo também é). Em qualquer caso, uma das respostas possíveis continua a passar pelos valores perenes de uma cultura das imagens que não menospreze os seus vectores genuinamente cinematográficos.
Leio, a propósito, uma notícia anunciando o regresso às salas britânicas de Barry Lyndon (1975), o admirável filme de Stanley Kubrick, inspirado em William Thackeray, sobre a perversa ascensão social de um irlandês, interpretado por Ryan O’Neal, na Inglaterra do século XVIII. Trata-se de uma reposição organizada pelo British Film Institute, em colaboração com a Warner Bros., celebrando o facto de se tratar de um filme com uma dimensão visual a que “só o ecrã de cinema pode fazer justiça”.
Que está em jogo? Menosprezar o consumo caseiro de filmes? Demonizar a importância social da televisão? Nada disso. Acima de tudo, importa preservar uma cultura das imagens que não anule tudo o resto — incluindo, entre outras coisas, o cinema e o conceito de patriotismo — na voragem futebolística da televisão.