De que falamos quando falamos dos EUA? Michael Moore propõe uma visão "europeizada" que, mesmo na sua dimensão mais demagógica, vale a pena discutir — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Junho), com o título 'O que é a demagogia?'.
Nos últimos tempos, por razões cuja importância será desnecessário sublinhar, temos tido uma percepção dos EUA fortemente contaminada pelos efeitos mediáticos de um demagogo chamado Donald Trump. Que as coisas nunca são automáticas ou definitivas, prova-o o confronto que podemos estabelecer, agora, com o novo filme de Michael Moore, cineasta que, em tudo e por tudo, é uma antítese de Trump — acontece que E Agora Invadimos o Quê? é um objecto profundamente demagógico.
De que falamos quando falamos de demagogia? Poderíamos responder através da imagem que o filme dá de nós próprios, europeus. De facto, a demonização dos EUA parece colher o seu primeiro e decisivo “argumento” no estado paradisíaco desta nossa Europa — para Moore, as contradições internas da União Europeia só podem ser uma ilusão masoquista.
Não simplifiquemos ainda mais. Sobretudo porque acusar Moore de demagogia não é o mesmo que dizer que ele mente... Os exemplos são muitos, mas há um especialmente significativo. Assim, uma boa parte das imagens que ele nos apresenta do seu próprio país dá a ver cidadãos negros a serem espancados por polícias. Ora, ninguém irá negar a gravidade das formas de discriminação e injustiça que continuam a ferir a unidade simbólica da nação americana. Mas há uma pergunta que fica: porque é que se trata a complexidade de tudo isso através da montagem gratuita de algumas imagens chocantes, omitindo o facto de, melhor ou pior (mas com efeitos muito reais), os EUA terem sido presididos nos últimos oito anos por um homem que, salvo erro, não tem a pele branca? É uma pergunta cinematográfica, entenda-se: não se pode (ou não se deve) reivindicar o cinema como instrumento de discussão política para, depois, o usar como se fosse uma vulgar colecção de spots televisivos.