De que falamos quando falamos dos EUA? Michael Moore propõe uma visão "europeizada" que, mesmo na sua dimensão mais demagógica, vale a pena discutir — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Junho), com o título 'E se a América fosse culpada de todos os males do mundo?'.
Michael Moore cultiva um bizarro amor pelo seu país: por um lado, gosta de lembrar que os fundamentos da democracia e da tolerância estão inscritos nas páginas mais gloriosas da história dos EUA; por outro lado, parece acreditar que todos os males deste mundo se podem explicar, não apenas através dos suspeitos do costume (Richard Nixon, Ronald Reagan, George W. Bush, etc.), mas por acções políticas e militares de entidades americanas. Vendo o seu novo filme, E Agora Invadimos o Quê?, dir-se-ia que podemos pensar em tudo o que vai mal no planeta Terra, das guerras às atribulações da segurança social, concluindo com uma exuberante palavra de ordem: “A culpa é dos americanos!”
Depois de títulos como Fahrenheit 9/11 (2004), questionando a ressaca política do 11 de Setembro, ou Sicko (2007), sobre os desequilíbrios do sistema de saúde americano, estamos, agora, perante um filme assumidamente político que se apresenta como um documentário temperado por um desconcertante sentido de humor.
Tudo começa com a definição dos EUA como “o país que invade outros países” (Coreia, Vietname, Afeganistão, etc.). A partir daí, Moore resume tudo o que aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial (cujas “invasões”, curiosamente, não são citadas) em dois vertiginosos minutos de abertura para, logo a seguir, propor o programa de trabalho que está condensado no título do seu filme: porque não “continuar” as invasões, agora “ocupando” outros países?
Com que objectivo? Inventariar o que, no plano social e laboral, funciona bem nesses países, de modo a “exportar” os seus métodos e valores para os EUA. Quem vai protagonizar essa missão redentora? Um “repórter” angelical munido de uma bandeira americana, quer dizer, o próprio Michael Moore.
Em Portugal, com a CGTP
O realizador visita a Itália e depara com uma elaborada protecção dos direitos dos trabalhadores, desde as férias pagas até às licenças de maternidade; em França, fica maravilhado com a qualidade das refeições servidas na cantina de uma escola e também com a transparência das aulas de educação sexual; passa por Portugal, canta a Internacional num comício da CGTP no 1º de Maio e mostra toda a sua admiração por um sistema de combate às drogas que deixou de penalizar os consumidores; enfim, na Islândia, além de uma entrevista com Vigdís Finnbogadóttir, primeira mulher do mundo a ser eleita como presidente de um país, celebra a muito significativa percentagem de figuras femininas nas instâncias políticas e económicas do país.
Não é fácil seguirmos a lógica de raciocínio de Michael Moore. A abordagem da Islândia é significativa: será que o facto de o país se distinguir por uma tão invulgar (e meritória) igualdade de oportunidades entre homens e mulheres justifica que se conclua que o próximo passo para o Paraíso seria a entrega da gestão do nosso destino... apenas a mulheres?
A pergunta não pode deixar de envolver alguma irónica distanciação, mas convenhamos que quem convoca a arma da ironia é o próprio Michael Moore. Dir-se-ia que ele passou uma fronteira que torna o seu trabalho (cinematográfico) cada vez mais discutível. A comparação com filmes anteriores pode ser elucidativa — e até pedagógica.
Em Fahrenheit 9/11, por exemplo, mesmo que pudéssemos não concordar com a sua leitura dos factos, colocava-se na posição do documentarista que recusa a ilusão muito televisiva da transparência: a sua câmara via e ouvia, observava e perscrutava, e o resultado possuía as virtudes de uma visão que se assumia por inteiro na sua irredutibilidade (“eu vejo assim o mundo”). Agora, em E Agora Invadimos o Quê?, prevalece a facilidade de um estilo televisivo de “apanhados”, por vezes próximo da abjecção documental (por exemplo, quando Michael Moore finge “corromper” as crianças com que almoça na escola francesa, oferecendo-lhes... Coca Cola!).
Seja como for, não deitemos fora o bebé com a água do banho — para além do ruído dos super-heróis, típicos do nosso Verão cinematográfico, Michael Moore é, pelo menos, alguém que nos fala de gente viva e problemas reais.
>>> Site oficial de Michael Moore.
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