No futebol televisivo, o prazer do jogo está a ser frequentemente substituído por discursos mais ou menos insultuosos em que o gosto de ver já não conta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Maio), com o título 'A cultura do futebol'.
1. Vejo o comentador de futebol Rui Santos (SIC Notícias) a chamar a atenção para aquilo que está a “estragar o futebol”. Refere, em particular, as “lógicas de comunicação” dos chamados clubes grandes que confundem “rivalidade” com “boçalidade”, alimentando um clima de permanente agitação mediática (que, a meu ver, corresponde a uma violenta infantilização dos espectadores). Não quero favorecer o maniqueísmo de considerar Rui Santos uma voz isolada. Não se trata de criar “heróis” ou “anti-heróis” — já basta o que basta. Em todo o caso, a saudável contundência das suas palavras tornou-se coisa rara no território televisivo. Creio mesmo que passou a haver formas discursivas, provenientes de todos os quadrantes do futebol, que estão a favorecer um esvaziamento moral do simples gosto de admirar um clube (seja ele qual for). Por vezes, algumas discussões em torno de um penalty são de tal modo primárias e infelizes que o espectador não pode deixar de pensar: para simpatizar com um determinado clube, é preciso aceitar este tipo de discurso?
2. Na prática, assiste-se a um trágico esvaziamento cultural do futebol. E não devemos ter medo de usar a palavra cultura a propósito de futebol. Porque a cultura não é “ópera & bailado”, como proclamam os cínicos que menosprezam o valor de qualquer labor artístico. A cultura é o imenso caldeirão de valores (ou da falta deles) que marcam todos os meandros de qualquer tecido social.
3. Ora, no futebol, parece ter triunfado uma cultura de “guerra civil” em que já nada mais conta a não ser a possibilidade de difamar o adversário, reduzindo-o a vítima simbólica de uma noção pueril de triunfo e celebração. Tudo isto acontece num contexto (português e internacional) em que a arte de dar a ver o futebol através das transmissões televisivas evoluiu de forma fascinante. Mas quem é que ainda está, realmente, a olhar para a beleza do jogo?