Entre grandes e pequenos acontecimentos, vale a pena (re)lembrar que o essencial do Festival de Cannes não acontece na passadeira vermelha... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Maio), com o título 'Olhar à nossa volta'.
Na sessão em que foi apresentada uma das mais belas revelações desta edição de Cannes — o filme argentino La Larga Noche de Francisco Sanctis, de Francisco Márquez e Andrea Testa (secção “Un Certain Regard”) —, Thierry Frémaux, delegado geral do certame, fez questão em sublinhar um dado curioso: a vitalidade da produção da Argentina existe em paralelo com uma velha tradição de crítica e jornalismo cinematográfico.
Escusado será dizer que não se trata de estabelecer qualquer hierarquia corporativa entre cinema “filmado” e cinema “escrito”. Em todo o caso, importa não ceder ao simplismo dos tempos: muitas conjunturas marcantes da história do cinema (a começar, claro, pela Nova Vaga francesa) integram a reflexão escrita e o pensamento teórico como elementos fundamentais da sua dinâmica.
No contexto tão específico de um certame como o Festival de Cannes, este tipo de perspectiva tem tanto mais valor quanto sabemos que as visões mais ligeiras, dominadas pelo fascínio dos momentos efémeros da passadeira vermelha, tendem a reduzir a pluralidade dos filmes às ilusões da espuma mediática. Obras como La Larga Noche de Francisco Sanctis (sobre as memórias dramáticas da ditadura militar) convocam o espectador para uma compreensão dos factos individuais e da história colectiva capaz de recusar, ponto por ponto, a aceleração e os valores deterministas da ideologia televisiva dominante.
Mais do que nunca, num contexto de reconversão tecnológica (digital) dos filmes e da própria ideia de cinema, é isso que está em jogo. A saber: a defesa do cinema como um acontecimento capaz de, literal ou simbolicamente, nos ajudar a olhar à nossa volta. Do meu ponto de vista, La Fille Inconnue, dos irmãos Dardenne, foi o exemplo modelar de tal atitude.