quinta-feira, novembro 26, 2015

O menosprezo pelo pensamento

1. O menosprezo pelo pensamento circula com facilidade na sociedade portuguesa: questão histórica, política, simbólica — complexa, sem dúvida.

2. Em todo o caso, é interessante referir que, dos tempos do salazarismo, transitou para a democracia uma visão ideológica das práticas críticas que continua a ser dominante [escusado será dizer que estas linhas são escritas a partir de um ponto de vista que se reconhece minoritário]. Axioma brutal dessa visão: o mercado existe para desmentir o pensamento.

3. No cinema, tal visão utiliza sempre o mesmo silogismo: se a crítica diz "mal" de um filme, um eventual sucesso comercial desse mesmo filme desmente a justeza da própria crítica [exemplo sintomático, obviamente decorrente de uma honesta convicção: o título acima reproduzido, publicado no jornal i, 25-08-15]. Implicitamente, por certo involuntariamente, sugere-se que a estupidez dos críticos é de tal modo gigantesca e patética que desconhecem a especificidade do seu próprio pensamento, de algum modo esperando que os índices da economia venham "transcrever" os seus juízos de valor (como é que uma análise de linguagens narrativas, imagens, sons, planos, montagem, é "desmentida" por uma tabela excel de bilheteiras, eis o que fica por esclarecer).

4. Escusado será dizer que a argumentação carece da mais básica consistência — o seu impensado é imenso. Primeiro, porque "a" crítica não existe — na melhor das hipóteses, existem críticos, no plural. O labor crítico é um espaço marcado por profundas diferenças (de pensamento, justamente) e, mesmo que possamos considerar que todos os críticos são medíocres, de facto não se exprimem como um rebanho. Depois, porque, com mais ou menos talento, um pensamento crítico é isso mesmo, um pensamento — não algo que se possa reduzir ao dizer "bem" ou dizer "mal", muito menos algo que dependa dos movimentos de qualquer índice de box office.

4. a) - Vale a pena recordar, a esse propósito, que a demonização da crítica adquire as mais contrastadas configurações, inevitavelmente decorrentes das componentes de determinados contextos ideológicos e políticos — hoje em dia, exprimir um juízo negativo sobre um filme "popular" parece legitimar todas as formas de insulto; há 40 anos, exprimir um juízo positivo sobre um filme "popular" (cf. Tubarão) justificava, no mínimo, que o crítico em causa fosse remetido para a Sibéria...

5. O que é interessante, insisto, é que tal argumentação encara a dinâmica económica e financeira como um factor automático de desautorização de qualquer pensamento. Qualquer? Não exactamente, apesar de tudo. Valeria a pena, por exemplo, saber se os biliões que o negócio do tabaco movimenta em todo o mundo anulam, automaticamente e sem possibilidade de recurso, as considerações que os médicos tecem há muitas décadas sobre as relações entre os cigarros e as mais diversas formas de cancro...

6. O que é que os cigarros tem a ver com os filmes? Os críticos são os médicos do cinema? Nada disso, como é óbvio — evitemos as derivas demagógicas do senso comum. O que, aqui, se pensa não é exactamente o "tabaco" ou o "cinema". O que assim se pensa é a dominação de uma visão economicista dos comportamentos humanos em que se tenta impor a ideia de que as performances financeiras dispensam qualquer forma de pensamento.

7. O problema não está em que existam filmes que nos dividam — salvo erro, a história do cinema é também a história dessas divisões. O problema reside no facto de alguns valores sociais dominantes nos quererem convencer da importância de não pensar.
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* POST SCRIPTUM: Pensar os "recordes" dos filmes, por exemplo, é uma atitude cujo valor jornalístico merece ser enaltecido. Sobretudo se, ao mesmo tempo, tal pensamento reflectir a preocupação, igualmente jornalística, de tentar compreender o mundo à nossa volta, colocando algumas das perguntas mais prementes que a questão suscita. Cinco perguntas, pelo menos:

I — Quais são os modelos social e economicamente dominantes de ficção, nomeadamente no espaço televisivo?
II — Que diferenças existem, e quais os seus efeitos concretos, entre as campanhas promocionais de filmes distintos (de qualquer origem geográfica ou cultural)?
III — De que modo o espaço televisivo promove, ou não, um pensamento plural sobre o cinema?
IV — De que modo a escola promove, ou não, um conhecimento alargado da pluralidade do cinema e da sua história?
V — De que modo as formas jornalísticas dominantes se interessam, ou não, pela divulgação dos produtos cinematográficos (de qualquer origem geográfica ou cultural) que não desfrutam de grandes campanhas promocionais?