PLAYTIME (1967), de Jacques Tati |
Muitos caminhos do cinema contemporâneo passam, ou passarão, pelo espaço televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Setembro), com o título 'Para além das rotinas televisivas'.
Vale a pena registar alguns dados soltos, aparentemente sem qualquer ligação, da actualidade audiovisual. Desde logo, no contexto português: está em exibição o segundo volume do filme As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes (candidato português a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro), anunciando-se a terceira e última parte para 8 de Outubro. Depois, ainda entre nós, assistimos ao reforço da presença das produções do canal norte-americano HBO na televisão por cabo, mais concretamente no TV Séries (actualmente com destaque para Show Me a Hero, notável mini-série sobre a construção de habitações sociais em Yonkers, Nova Iorque, na décadas de 1980/90). Enfim, dos mais diversos festivais internacionais, de Cannes a Toronto, vão chegando notícias sobre o peso crescente das produções do serviço de streaming Netflix (também já anunciado para começar a funcionar no mercado português).
São sintomas de importantes mudanças na oferta do audiovisual. Assiste-se, assim, a uma espectacular revalorização do conceito de “série”, não apenas através dos produtos televisivos que, desde os tempos heróicos de Twin Peaks (1990-91), transfiguraram a produção e a difusão, mas também de objectos especificamente cinematográficos — nesta perspectiva, o filme de Miguel Gomes pode mesmo vir a ser reconhecido como um caso premonitório.
Daí também o desafio comercial e estrutural (numa palavra, cultural) que tudo isto envolve. Em última instância, como sempre, tudo se irá decidir no território específico dos espectadores. Por isso mesmo, tornou-se mais necessário do que nunca pensar o que está a acontecer com a proliferação de novos mecanismos (ou “plataformas”, como se diz na gíria tecnocrática) de acesso às matérias audiovisuais.
Celebrar a pluralidade de tais mecanismos apenas pela “facilidade” de acesso (até à banalidade de ver o gigantismo de um Lawrence da Arábia no raquitismo de um ecrã de telemóvel) será uma via simplista e redutora, até porque tende a ser contaminada pela perniciosa “naturalização” dos circuitos ilegais. No contexto português, em particular, isso passa pelo travar de uma guerra cultural que opõe a riqueza imensa do cinema, contemporâneo ou não, à ridícula formatação das telenovelas (guerra que, não tenhamos ilusões, está a ser ganha pelo império telenovelesco). Mais do que isso: a consolidação de entidades como a Netflix reforça o valor de uma prática jornalística que confronte o leitor/espectador com as muitas alternativas às mais pobres rotinas televisivas.
Registe-se um pormenor: o crescente impacto das reposições de filmes que, desde o regresso de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, há cerca de três anos, voltaram a marcar presença nas salas portuguesas. Mesmo no seu relativismo, os números de ciclos como o da obra de Jacques Tati (mais de 10 mil espectadores), revelam uma verdade rudimentar: o público não é uma massa amorfa de comportamentos sempre iguais e repetidos.