GUSTAVE COURBET Natureza morta com flores 1863 |
* Em boa verdade, trata-se de um fenómeno transversal, ainda e sempre enquadrado por três fraquezas ideológicas — ou por três manifestações do mesmo fraco labor ideológico:
1. A indigência filosófica das forças que se apresentam sob o rótulo de “direita” ou “centro-direita” (neste caso, o PSD e o CDS, aliados no governo), na melhor das hipóteses conduzidas por um pragmatismo económico-financeiro, europeísta, em boa verdade esvaziado de qualquer conceito cultural de Europa.
2. O infantilismo circense das forças que, como o PCP ou o Bloco de Esquerda, vivem da agitação mediática (sobretudo televisiva) que sabem provocar através de continuados e virulentos ataques contra o PS, acusando-o de endémica infidelidade aos ideias da “esquerda” — para depois, face aos resultados eleitorais, e num clamoroso desrespeito pelos valores mais básicos da inteligência humana, virem manifestar a esperança de que o mesmo PS venha reforçar a unidade (?) da “esquerda”. Desculpem, importam-se de repetir?...
3. Enfim, o angustiado ziguezague do PS, há muito paralisado no esgotamento dos ideais do “socialismo real” (metodicamente esvaziados — a nível europeu, precisamente — desde as convulsões subsequentes à Queda do Muro de Berlim), não sabendo, de facto, o que dizer ou fazer, entregando-se, pendularmente, a guerras internas mais ou menos fratricidas, de interminável desgaste.
* Não há solução para esta comédia de poucas ideias, até porque também não há, no seu elenco, uma única força política que demonstre alguma vontade de questionar o alarido televisivo em que o jogo político se transformou — nesse aspecto, chega a ser obsceno o silêncio da "esquerda" (de todas as transformações & revoluções) face ao poder cultural e simbólico do espaço televisivo na nossa sociedade.
* Haveria, apesar de tudo, uma possibilidade de, pelo menos, deslocar os territórios do próprio pensamento político. Tal possibilidade passaria, uma vez mais, pela disponibilidade do PS enfrentar a estupidez beata com que é brandido o estandarte da “esquerda”, continuando a alimentar a ilusão de que, por magia, tal palavra arrasta uma colecção de milagres que confere a todos, governados e governantes, as chaves do reino de todas as redenções financeiras e sociais.
* A disponibilidade do PS implicaria uma atitude que, é preciso dizê-lo, não lhe garantiria nenhuma consagração automática junto dos eleitores — poderia até penalizá-lo de forma drástica em próximos actos eleitorais. Tratar-se-ia de reafirmar um dos valores mais viscerais gerados pelo 25 de Abril (obviamente, também dos mais recalcados). A saber: a insuficiência da dicotomia “direita/esquerda” para dar conta das dinâmicas políticas e, mais especificamente, da imaginação dos projectos políticos.
* Não creio que, dentro do PS, haja alguém capaz de formular o enunciado muito simples que decorreria de tal atitude. A saber: a afirmação clara e inequívoca de que o PS nada tem a ver com a noção mística de “esquerda” que, através de um continuado e malicioso processo de culpabilização (dos outros), continua a ser relançada por PCP, Bloco de Esquerda e suas forças satélite.
* Em qualquer caso, há dois dados que importa não simplificar: nada disto decorre de (ou implica) qualquer negação das muitas tragédias acumuladas pelo governo PSD/CDS, como nada disto pode escamotear os desmandos históricos — e não tenhamos medo das palavras: ditatoriais — inscritos no património da “esquerda” que se quer purificar através da própria nomenclatura que para si adopta, julgando desse modo demonizar tudo o que fique fora das suas fronteiras ideológicas.
* No dia das eleições, as mesmas televisões que nunca se preocupam em colocar o problema da abstenção na sua agenda de “debates”, lançaram inquietos repórteres que colocavam perturbantes perguntas sobre a gravidade de tal problema... E os protagonistas políticos, entrevistados junto às mesas de voto, puseram todos, de “direita” e de “esquerda”, um ar muito circunspecto e preocupado com o assunto.
* Agora, feitas as contas, podemos dizer que mais de quatro milhões de portugueses — 4.059.465, para sermos exactos — se abstiveram. Entretanto, em mais uma demonstração da hipocrisia reinante, o assunto desapareceu da actualidade... Vale a pena perguntar se as diatribes “direita/esquerda” contribuem, de alguma maneira, para contrariar tão avassaladora indiferença.