A estreia de Homem Irracional relança-nos no labirinto do masculino/feminino, fulcral na dinâmica dramática de todo a obra de Woody Allen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'Homens e mulheres assombrados por verdades e mentiras'.
É bem verdade que associamos a obra do realizador Woody Allen à presença do actor Woody Allen. Há razões fortes para que tal aconteça, a começar pelo facto de muitas das suas personagens, mesmo não sendo explicitamente autobiográficas, espelharem, de forma literal ou perversa, as suas ideias e sensibilidade. Em todo o caso, não deixa de ser curioso referir que, dos quinze títulos que já dirigiu no século XXI, de A Maldição do Escorpião de Jade (2001) a Homem Irracional (2015), Woody Allen apenas tenha surgido em cinco deles (a última vez ocorreu em 2012, com Para Roma com Amor).
Provavelmente, podemos dizer que muitos dos seus protagonistas masculinos são derivações, ora dramáticas, ora paródicas, de um padrão que terá estabelecido em 1977, com Annie Hall. Ao interpretar Alvy Singer, um actor que tenta reencontrar o equilíbrio afectivo com a personagem de Annie Hall (Diane Keaton), Woody Allen condensa uma atitude existencial que nasce de uma espécie de pragmatismo sarcástico face às agruras da existência.
A certa altura, Alvy diz a Annie: “Sinto que a vida está dividida entre o horrível e o miserável. São duas categorias. O horrível está, sei lá, nos casos terminais, pessoas cegas, estropiadas. Não sei mesmo como é que conseguem viver. É qualquer coisa que me espanta. Os miseráveis são todos os outros. Por isso, deves agradecer o facto de ser miserável, porque ser miserável é ter muita sorte”. Não parece que Annie tenha a mesma visão de Alvy. Há mesmo uma cena, na Califórnia, em que ela se mostra encantada com o ambiente: “Aqui é tudo tão limpo”. Mas nada disso comove Alvy: “Isso é porque eles não deitam fora o lixo, despejam-no nos programas de televisão”.
As mulheres dos filmes de Woody Allen são, quase sempre, um eco ambíguo dos silêncios e assombramentos que circulam pelo universo dos homens. Intimidade (1978), por certo a sua mais explícita homenagem ao mestre Ingmar Bergman, é especialmente revelador. Centrado no divórcio de um casal já na terceira idade (E. G. Marshall/Geraldine Page), o filme observa as reacções das três filhas adultas, interpretadas por Diane Keaton, Kristin Griffith e Mary Beth Hurt, cada uma delas projectando nos pais as atribulações das suas próprias histórias emocionais.
Dir-se-ia que a obra de Woody Allen se expõe à possibilidade de ser lida através das mulheres que partilharam a sua intimidade, quanto mais não seja porque na sua obra há, de facto, um período Diane Keaton e outro centrado em Mia Farrow. Aliás, este último desemboca num filme de sofisticada crueldade, Maridos e Mulheres (1992), que na altura do seu lançamento não pôde deixar de suscitar paralelismos com a separação do par Allen/Farrow (também em 1992).
Ainda assim, evitemos as típicas grosserias do mediatismo “cor de rosa”: se há algo de confessional na obra de Woody Allen, não é no plano mais ou menos picaresco das “peripécias”. Se os seus heróis masculinos, mesmo os mais divertidos, podem tender para uma dilaceração criminosa (observe-se a complexa e perturbante personagem de Joaquin Phoenix que justifica o título Homem Irracional), há nas suas principais personagens femininas uma capacidade de distanciamento que, pelo menos até certo ponto, lhes confere o papel de consciências morais (reais ou ilusórias) dos homens com quem convivem.
Isso é particularmente nítido nos seus mais complexos filmes “corais” (em que assistimos ao cruzamento de muitas histórias interligadas, sem que uma se sobreponha a qualquer outra), com destaque quase inevitável para o fascinante Ana e as Suas Irmãs (1986), protagonizado por Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest. Aí encontramos um novo trio de irmãs enredadas numa teia de verdade e mentira, não apenas com os homens, mas também entre si. Woody Allen filma-as ainda com alguma crença na transparência das relações humanas, embora também com o cepticismo de quem não cultiva ilusões redentoras. Como ele próprio diria, numa das suas máximas mais desencantadas: “Confiança é o que temos antes de ter compreendido o problema”.