O MUNDO A SEUS PÉS (1941) |
De que falamos quando falamos de O Pátio das Cantigas? Da "crítica"? Dos CTT? Da cerveja Sagres? Ou apenas dessa coisa bizarra que dá pelo nome de cinema? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Setembro).
E reencontramos O Pátio das Cantigas. Valerá a pena dizer alguma coisa a propósito das considerações de Leonel Vieira sobre aquilo que ele chama a “crítica”? (Notícias Magazine, 6 Set.). Creio que sim, quanto mais não seja porque assistimos à renovação de um discurso de difamação pessoal que, no plano profissional, conheço há mais de 40 anos.
Quando um realizador de um filme que já teve meio milhão de espectadores aplica esse número como um argumento para denegrir o pensamento de “quatro ou cinco pessoas” (sic) que formularam juízos de valor negativos sobre o seu trabalho, o que se procura é apenas desvalorizar o acto de pensar. Na prática, o sistema mental de Leonel Vieira confere legitimidade a mim e a Jorge Leitão Ramos (somos os dois citados na pergunta que lhe foi colocada) para aplicar o mesmo modelo de silogismo. Poderia, por exemplo, referir os leitores que me vieram dizer: “Gostei muito do que escreveu — que péssimo filme!” Será que é esse tipo de chicana que ele tenta protagonizar e, sobretudo, generalizar?
Considerando eu que O Pátio das Cantigas é um descendente directo da banalidade de linguagens que, desde 1977, tem sido imposta à maioria dos cidadãos/espectadores através do domínio narrativo e financeiro das telenovelas, seria também importante esclarecer se 2 ou 3 milhões de espectadores medidos em cada noite são suficientes para relegar o meu pensamento para o reino da estupidez.
Como alguns outros cineastas portugueses, a Leonel Vieira não basta a boa performance comercial do seu trabalho. Aparentemente, só ficaria satisfeito se todos os que se exprimem no domínio público se regessem pela mesma atitude difamatória. Ninguém lhe perguntou, por exemplo, se a promoção de O Pátio das Cantigas através de vouchers familiares adquiridos nos CTT é uma proposta para resolver os complexos problemas de produção do cinema português. Como ninguém especulou sobre a justeza narrativa da monumental proliferação de garrafas de cerveja Sagres nas imagens do filme. Seria interessante, ou pertinente, afunilar as ideias nesse sentido?
Pessoas como Leonel Vieira parecem querer sugerir que a vitalidade social (do cinema ou de qualquer outra actividade criativa) resulta de fenómenos de absoluta homogeneidade de postura e pensamento. É uma pobre utopia, tipicamente televisiva. Eu vivo bem com o facto de O Pátio das Cantigas render nas bilheteiras — aliás, há décadas que digo e escrevo que a reconstrução de uma massa regular de espectadores nas salas deve ser uma prioridade do mercado.
Mas não escrevo na qualidade de técnico de contas. De acordo com o discurso de Leonel Vieira, um dia destes alguém vai querer obrigar-me a dizer que O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, é um mau filme porque foi um apoteótico falhanço comercial. Desculpem, mas isso não... O que não me impede de defender o direito de Leonel Vieira fazer e refazer O Pátio das Cantigas como muito bem entender.