1. Não deitemos fora o bebé com a água do banho... Que é como quem diz: há, por certo, muitas formas de utilização do Facebook que não promovem o simplismo mental ou o pitoresco anódino, satisfazendo, inclusive, necessidades de informação e/ou comunicação.
2. Em todo o caso, não parece que isso seja uma boa razão para que os responsáveis do Facebook continuem a tratar o género humano como uma colecção de marionetas eternamente infantis, promovendo com grande pompa "revolucionária" o que não passa de variações (menores) sobre matrizes técnicas há muito experimentadas — e experimentadas com outra inteligência criativa.
3. Depois da anedótica revelação de Mark Zuckerberg, apostado em criar um botão de "dislike", chegaram os videos de 360º... De que se trata? De um novo conteúdo imersivo (a palavra justificará, por certo, alguma reflexão autónoma, de tal modo através dela se tenta anular — e des-responsabilizar — o conceito de emissor) que, em boa verdade, de forma tosca, repete dispositivos visuais há muito correntes nos mais medíocres jogos de video.
4. Daí a celebrar tamanha banalidade como um delirante acontecimento (... também tu, BBC?) vai um passo que, apesar de tudo, em nome da memória, convirá relativizar. Quem é que, entre o staff de jovens génios que sustentam o edifício ideológico do Facebook, alguma vez se dedicou a conhecer a riqueza das formas de construção do espaço no interior da história imensa, e imensamente plural, do cinema? Alguma vez se deram ao trabalho de ver Touch of Evil/A Sede do Mal (1958), de Orson Welles, e o seu prodigioso plano-sequência de abertura?
5. Será que conhecem o fabuloso trabalho de câmara de Raoul Coutard em Weekend (1967), de Jean-Luc Godard? Ou, pelo menos, dispuseram de 7 minutinhos do seu tempo tecnocrático para ir ao YouTube e ver com olhos de ver o plano circular que dá pelo nome de 'Acção musical'?
6. E sabem que, em Profissão: Repórter (1975), Michelangelo Antonioni filmou a morte da personagem interpretada por Jack Nicholson como um desafio, material e conceptual, à própria estabilidade do espaço, reduzindo as novas pobres imagens de 360º a uma brincadeira fútil para crianças que não querem pensar — ou que foram ensinadas a não pensar?
7. O problema não está tanto, entenda-se, no facto de a gestão financeira de um potentado global como o Facebook existir de acordo com uma lógica que necessita, semana sim, semana não, de alagar o planeta com uma "novidade"... O problema está no modo como fenómenos técnicos e promocionais deste género fazem tábua rasa da memória humana acumulada ao longo de muitos séculos (sim, séculos: poderíamos citar objectos da história da pintura ou da fotografia cuja sofisticação espacial reduz a pó mais este "acontecimento" do Facebook). Algum pudor, recomenda-se — se possível olhando a direito para a complexidade das coisas.
DAVID HOCKNEY Mother 1985 |