Gene Hackman THE FRENCH CONNECTION (1971) |
O recente filme francês A Rede do Crime justifica uma evocação de The French Connection, produção americana de 1971 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Julho), com o título 'Afinal, o que é a montagem de um filme?'.
Com a estreia do muito interessante filme francês A Rede do Crime, de Cédric Jimenez, deparámos com um novo retrato da chamada “French Connection”, uma rede de tráfico de drogas, organizada a partir do sul de França, especialmente activa no final da década de 1960. Surgiu, por isso, a inevitável evocação de The French Connection, produção americana de 1971 que entre nós ficou consagrada com o título Os Incorruptíveis contra a Droga — foi um genuíno fenómeno popular, além do mais consagrado com cinco Oscars, incluindo os de melhor filme, melhor realização (William Friedkin) e melhor actor (Gene Hackman no papel do polícia Jimmy “Popeye” Doyle, por certo uma das personagens mais emblemáticas de toda a sua carreira).
Vale a pena evocar o filme de Friedkin para além dos factos abordados. Aliás, se o trabalho crítico sobre os filmes pode ter alguma pertinência didáctica é, justamente, na atenção à mais básica (e também mais esquecida) das diferenças: a “coincidência” temática de dois filmes nada nos diz sobre as singularidades das respectivas linguagens.
The French Connection corresponde a uma conjuntura (fascinante!) em que, através de toda uma galeria de filmes brilhantes, o cinema de Hollywood estava a transfigurar os seus modos de contar histórias. E não deixa de ser curioso e sintomático que os outros dois Oscars ganhos pelo filme tenham sido para os responsáveis pelo argumento adaptado (Ernest Tidyman) e pela montagem (Gerald B. Greenberg).
A montagem de The French Connection merece ser destacada, desde logo por causa de uma célebre sequência de perseguição de automóvel, em grande parte filmada nas ruas que ficam por baixo de uma linha de metro na zona de Bensonhurts, Brooklyn. O que é impressionante em tal sequência não é exactamente a velocidade, em sentido estrito. Nada a ver, portanto, com a mediocridade narrativa de alguns filmes de super-heróis dos nossos dias (avalie-se o recente Vingadores: a Era de Ultron), em que se confunde a acumulação de imagens de curta duração com a laboriosa e exigente construção dos tempos narrativos. O que conta naquela sequência é a dinâmica — apetece dizer: a dialéctica — que se estabelece entre o olhar de uma personagem (“Popeye” Doyle) e a vertigem de eventos em que está envolvido.
São dessa altura alguns filmes admiráveis em que a montagem explorava a criação de novas durações, nessa medida questionando os modelos clássicos de definição das personagens e, consequentemente, os mecanismos de identificação do próprio espectador. Dede Allen foi uma das protagonistas de tal processo, tendo assinado a montagem de títulos fundamentais como Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967), Raquel, Raquel (Paul Newman, 1968) ou Serpico (Sidney Lumet, 1973). Acima de tudo, são filmes que nos ensinam que o grande cinema popular está longe de ser uma máquina de acumulação de “efeitos especiais” aplicados por tecnocratas sem sensibilidade narrativa.