quinta-feira, junho 18, 2015

Nas palavras de Marlon Brando


O trailer de Listen to Me Marlon deixa a sugestão de que se trata de uma inusitada viagem à intimidade de Marlon Brando, a partir das suas próprias palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Junho), com o título 'Marlon Brando através dos sons da sua intimidade'.

A capacidade do documentário cinematográfico expor elementos da intimidade (seja de quem for) está, hoje em dia, contaminada pela obscenidade normativa de dois tipos de discurso: a linguagem televisiva, quando promove a ideia pueril segundo a qual colocar um microfone à frente de alguém envolve uma automática “revelação”, e a imprensa cor-de-rosa, com o seu rol de eventos mais ou menos “sexuais”, inevitavelmente “escandalosos”.
O mínimo que se poderá dizer de um filme como Listen to Me Marlon, realizado pelo britânico Stevan Riley, é que o seu projecto envolve algo bem diferente. Ou seja, quando o trailer começa por anunciar um “Marlon Brando nas suas próprias palavras”, a informação é para ser tomada à letra: ao longo de muitos anos, o actor americano (falecido em 2004, contava 80 anos) foi conservando o seu próprio arquivo sonoro — conversas caseiras, reuniões de trabalho, sessões de terapia, entrevistas, etc. —, apresentando-se o filme como uma montagem de materiais inéditos desse arquivo, pontuados por imagens fotográficas, reportagens e extractos de filmes.


Independentemente dos resultados, estará em jogo uma aposta algo semelhante à que foi possível descobrir, recentemente, no Festival de Cannes, com o documentário Hitchcock/Truffaut, de Kent Jones. Também neste caso a abordagem documental nasce de um singularíssimo registo sonoro: a conversa entre Alfred Hitchcock e François Truffaut, na base do mais célebre livro/entrevista da história do cinema (Le Cinéma Selon Alfred Hitchcock,1966).
Apresentado em Janeiro no Festival de Sundance (não consta, para já, das listas divulgadas pelos distribuidores portugueses), Listen to Me Marlon parece corresponder a uma visão capaz de contrariar qualquer estereótipo fabricado em torno do lendário intérprete de filmes como Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), Há Lodo no Cais (1954), O Padrinho (1972), O Último Tango em Paris (1972) ou Apocalypse Now (1979). Num artigo da revista Vanity Fair, publicado na sequência da exibição do filme em Sundance, Julie Miller citava as primeiras palavras com que Brando surge a traçar um dramático auto-retrato: “Um homem perturbado e só, enredado em memórias, num estado de confusão, tristeza, isolamento e desordem. Passou a ser convocado para além das regras normais da sociabilidade, acabando por tornar-se um boneco mecânico. Talvez sentisse que era mal tratado, tendo ficado revoltado com esse tratamento”.
Estamos, por certo, perante mais um contributo para (re)conhecer toda uma idade do cinema em que o actor não se confundia, como hoje tantas vezes acontece, com uma peça instrumental de filmes que se vendem através da promoção dos seus “efeitos especiais”. E não deixa de ser amargamente irónico o facto de, no trailer, escutarmos Brando a avaliar assim a sua solidão: “Quando aquilo que somos não é desejado, procuramos uma identidade que seja aceitável”.