O INTRUSO (1976) |
Laura Antonelli faleceu no dia 22 de Junho, contava 73 anos: com ela, e através dela, reencontramos as convulsões de um cinema italiano pleno de contrastes — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (23 Junho), com os títulos 'O sexo e o seu fantasma' e 'Morreu a musa infeliz do cinema erótico italiano'.
A história dos anos finais de Laura Antonelli é demasiado triste para que a evoquemos em nome de qualquer heroísmo ou pureza perdida. Deixemo-la em paz com o seu sofrimento. Evitemos apenas ceder ao mais que provável cinismo em relação ao contexto em que Malícia foi um dos símbolos mais populares de uma insólita “libertação” sexual. Essa não será uma boa razão para escamotear a desgraça cultural do nosso tempo presente. Porque, de facto, eis o contraste: face à visão formatada da sexualidade que, aqui e agora, circula pelo espaço “telenovelesco”, mais vale não tentar arrumar as convulsões dos anos 70 na prateleira das anedotas sociológicas.
Antonelli foi, afinal, um símbolo (apenas um), ora subtilmente sugestivo, ora banalmente caricato, de uma conjuntura em que a identidade sexual se transfigurou num enigma maior, por vezes mais inquietante do que os “êxtases” da década de 60 podiam fazer supor. A esse propósito, convém não esquecer que Malícia é contemporâneo de O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci (um italiano, hélas!).
E que as aventuras femininas (nada feministas, entenda-se) protagonizadas por Antonelli, mesmo as mais grosseiras, envolviam sempre a presença de um fantasma ambíguo: as leis do machismo estavam ameaçadas de falência. É disso que estamos a falar — só no Big Brother é que o sexo é vendido como uma função banalmente fisiológica.
MALÍCIA (1973) |
Celebrizada por comédias eróticas como A Minha Mulher É um Violonsexo (1971), de Pasquale Festa Campanile, Malícia (1973), de Salvatore Samperi, ou Esposamente (1977), de Marco Vicario, a actriz italiana Laura Antonelli foi encontrada morta pela sua empregada na manhã no dia 22, na sua casa de Ladispoli, nos arredores de Roma. Segundo o jornal Corriere della Sera, os serviços sociais locais indicaram que foi vítima de enfarte. O diário de Milão terá condensado de forma exemplar os contrastes da sua existência, titulando: “Morreu a diva atormentada”.
Tinha 73 anos (nasceu na cidade de Pola, a 28 de Novembro de 1941) e, de facto, abandonara o cinema em 1991, ano em que surgiu em Malícia 2000, filme que, de novo sob a direcção de Salvatore Samperi, procurava relançar a simbologia erótica de Malícia. Com o seu jogo calculado de nudez exposta e nudez sugerida, Malícia tipificava, afinal, uma linha temática de muitas comédias (italianas e não só) da década de 70: Antonelli era a mulher que, através da sua sedução “natural”, se revelava capaz de abalar o equilíbrio do tradicional espaço familiar, de alguma maneira iniciando os mais jovens nos enigmas do sexo e do prazer. Vale a pena recordar que, no contexto português, Malícia, lançado em Maio de 1974, acabou por ser um dos símbolos comerciais do fim da censura cinematográfica.
O papel de Malícia correspondeu, afinal, a uma espécie de balanço das personagens que fizeram de Antonelli um dos ícones eróticos do cinema italiano dos anos 60/70. Em 1966, tinha sido dirigida por Alberto Sordi em Como Casar a Nossa Filha? e, em 1969, protagonizara Malícia de Vénus (1969), realização de Massimo Dallamano mais ou menos “inspirada” em Sacher-Masoch. Surgiu ainda em Sesso Matto/Sexo Louco (1973), filme de episódios assinado por Dino Risi que brincava com a própria mitologia da actriz, Pecado Venial (1974), de novo sob a direcção de Salvatore Samperi, ou Com Elas Todo o Cuidado É Pouco (1979), de Luigi Zampa, título que a reuniu com Ursula Andress e Sylvia Kristel, também dois símbolos sexy da época.
Trabalhou ainda em registos como a aventura histórica, em Os Noivos da Revolução (1971), de Jean-Paul Rappeneau, ou a comédia de costumes, em A Casa dos Desejos (1972), de Claude Chabrol — em ambos contracenou com Jean-Paul Belmondo, então seu companheiro. Entre os momentos mais marcantes da sua carreira incluem-se os filmes em que foi dirigida por três nomes grandes da produção italiana do pós-guerra: Luigi Comencini (Meu Deus, ao que Eu Cheguei, 1974), Luchino Visconti (O Intruso, 1976) e Ettore Scola (Paixão de Amor, 1981).
Em 1991, para além do fracasso de Malícia 2000, Laura Antonelli foi detida depois de a polícia ter encontrado 36 gramas de cocaína em sua casa. Condenada a três anos e meio de prisão, passou toda a década de 90 envolvida em recursos dessa sentença que viria a ser anulada no ano 2000, reconhecendo-a como consumidora, mas não traficante. Muito exposta pela imprensa tablóide, despediu-se do público italiano com uma imagem gasta e infeliz. Há muito remetida a uma existência reservada, deixou expressa a vontade de ter um funeral rigorosamente privado.