A obra de Ingmar Bergman está de volta às salas portuguesas, através da reposição de seis filmes realizados entre 1950 e 1975 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Junho), com o título 'A angústia de Bergman com um tempero de humor'.
Haverá muito boa gente que, mesmo sem conhecer um único filme de Ingmar Bergman (1918-2007), não hesitará em classificá-lo como um símbolo universal da angústia humana. Afinal, é ou não verdade que, através de títulos como O Sétimo Selo (1957) ou A Máscara (1966), o mestre sueco retratou as zonas mais recônditas da alma humana, expondo a nossa busca desesperada de significados seguros para uma tão frágil existência?
É um retrato apressado e maniqueísta. Para o provar, bastará evocar uma produção de 1964 que, entre nós, recebeu o sugestivo título de A Força do Sexo Fraco [cartaz]. Tudo se passa algures na década de 20 (do século passado), num contexto mais ou menos reservado e paradisíaco: um palacete onde vive um famoso violoncelista, rodeado pelas suas musas; e há também um crítico musical que, embora empenhado em escrever uma biografia do artista, vai tentando que o músico interprete uma peça que ele próprio compôs... Dito de outro modo: Bergman dirigiu uma comédia, deliciosa e contagiante, marcada por uma elegância que sabe rir das suas próprias convenções — foi também o seu primeiro filme rodado em película a cores.
A Força do Sexo Fraco é, justamente, um dos seis títulos de Bergman que a distribuidora Leopardo Filmes vai repor em Lisboa (Espaço Nimas, com início na quinta feira, dia 25) e no Porto (Teatro Municipal Campo Alegre, a partir de 2 de Julho). A iniciativa prolonga um ciclo organizado em 2014, com 17 filmes de Bergman (entretanto editados em DVD), permitindo uma visão muito ampla de um autor que, afinal, em boa verdade, pode simbolizar a própria ideia de Cinema (com maiúscula, já agora).
Uma vez mais, importa sublinhar a diversidade da oferta. Não são, de facto, filmes que possamos condensar numa qualquer “temática” nem integrar numa “estética” unívoca. Um deles, Rumo à Felicidade (1950), corresponde mesmo a uma fase inicial de pesquisa de identidade artística, com Bergman a experimentar interessantes variações sobre modelos melodramáticos da época (a partir de dois jovens músicos, casados, que tocam na mesma orquestra).
Cronologicamente, segue-se O Rosto (1958), já com uma galeria de actores que identificamos como “bergmanianos”: Max von Sydow, Ingrid Thulin, Bibi Andersson e Erland Josephson. Será, talvez, a primeira sistematização de um tema que, de uma maneira ou de outra, irá assombrar toda a filmografia do autor: a partir das experiências de um grupo de actores, em meados do séc. XIX, acusados de práticas “espiritistas” nas suas performances, Bergman expõe a instabilidade das fronteiras entre o “teatro” e a “vida”. Há curiosas rimas entre este filme e Ritual (1969), também centrado numa “troupe” visada pela justiça, acusada de apresentar representações com elementos pornográficos.
O filme seguinte, A Fonte da Virgem (1960), envolve, por certo, o maior equívoco gerado em torno da obra de Bergman. Por um lado, trata-se de um objecto de delicada elaboração narrativa e simbólica, centrado na violação e morte de uma jovem em ambiente medieval; por outro lado, a parábola moral que o filme envolve, sublinhada pelas componentes da época, fez com que, durante muito tempo, Bergman fosse rotulado de autor de sagas “religiosas”. Paradoxalmente, a consagração de A Fonte da Virgem com o Oscar de melhor filme estrangeiro terá contribuído para a consolidação dessa visão redutora (Bergman receberia a mesma distinção com Em Busca da Verdade e Fanny e Alexandre, respectivamente de 1961 e 1982).
Segue-se Luz de Inverno (1963), título que, de alguma maneira, pode ajudar a corrigir aquela visão, uma vez que a questão religiosa reaparece, aqui, encenada através das dúvidas experimentadas por um padre interpretado pelo magnífico Gunnar Björnstrand. O filme, aliás, insere-se numa série de dramas existenciais, a preto e branco, prolongada com O Silêncio (1963), A Máscara (1966), A Hora do Lobo (1968) e Vergonha (1968), com o já citado A Força do Sexo Fraco a funcionar como a excepção que confirma a regra.
Enfim, terminamos com outra excepção, de novo a cores: A Flauta Mágica (1975) [cartaz] é um exuberante registo da ópera de Mozart, por certo sintomático do gosto de Bergman pelos artifícios do palco, mas também da sua disponibilidade criativa face à televisão. Embora estreado nas salas de cinema de muitos países (incluindo Portugal), trata-se de uma produção para o pequeno ecrã, bem distante de qualquer retórica televisiva — agora como há quarenta anos.