Em A Respeito da Violência, as memórias do colonialismo são apropriadas por um cinema de muitos estereótipos "militantes" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Abril), com o título 'Como reencenar as memórias coloniais?'
A proliferação do género documental tem dado origem a muitas formas de apropriação dos mais diversos materiais de arquivo. Há mesmo experiências que se fundamentam numa lógica de deslocação desses materiais para novos contextos narrativos. Exemplo admirável: Autobiografia de Nicolae Ceausescu (2010), do romeno Andrei Ujica, desmontando a ditadura de Ceausescu a partir de reportagens de propaganda do seu próprio regime. A Respeito da Violência, do sueco Göran Hugo Olsson, poderá ser visto como um prolongamento perverso dessa tendência, por certo a justificar uma reflexão atenta.
A Respeito da Violência tem à sua disposição alguns materiais realmente impressionantes — por exemplo, um retrato dos colonos britânicos na Rodésia ou o registo de uma missão sangrenta das tropas portuguesas na Guiné-Bissau. A organização de tais materiais é feita a partir de extractos (lidos por Lauryn Hill) de Os Condenados da Terra (1961), de Frantz Fanon, livro fulcral na leitura crítica do colonialismo e, em particular, na definição moral e militar dos movimentos de resistência.
No plano especificamente cinematográfico, o mais desconcertante é o facto de tudo isso se organizar a partir de uma matriz completamente datada de “filme militante”. E não apenas porque A Respeito da Violência elege como uma espécie de fetiche o chamado “cinema político” dos anos 60/70, cuja expressão mais rica e fascinante estará na obra de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, em títulos como Le Vent D’Est (1970), Vladimir et Rosa (1971) ou Tudo Vai Bem (1972). Sobretudo porque o faz como se a história tivesse ficado congelada, precisamente no período que retrata.
Em última instância, o filme resulta de uma colagem aos modelos mais demagógicos de alguma informação televisiva que se compraz em tratar qualquer tema (desde os golos de cabeça de Cristiano Ronaldo à infinita complexidade da história colonial) a partir de generalizações pueris. O seu principal efeito simbólico consiste em fornecer ao espectador a ilusão gratificante (?) de que é possível olhar seja o que for a partir de um lugar ideal, incólume às próprias convulsões que são colocadas em cena. No limite, é a importância política da escrita de Fanon (reproduzida no próprio ecrã como um banal sermão de verdade) que surge diminuída nas suas singularidades históricas. Ou como o simplismo panfletário menospreza a complexidade de qualquer gesto de conhecimento.