sábado, maio 02, 2015

Homens, mulheres e robots (2/2)

Alex Garland estreia-se na realização com Ex Machina, um filme que relança os temas e assombramentos das histórias de seres humanos e robots — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril), com o título 'Aventuras de uma mulher-robot num mundo de homens'.

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A novidade de Ex Machina não provém tanto da maneira como os humanos gerem as suas relações com os robots, mas mais da possibilidade de esses mesmos robots olharem os humanos através de um misto de frieza lógica e curiosidade emocional. Essa possibilidade é vivida pela personagem de Caleb (Domhnall Gleeson, que vimos num dos papéis secundários de Invencível, de Angelina Jolie), um especialista de informática de uma grande empresa de investigação e produção de computadores: ele é convocado pelo patrão, Nathan (Oscar Isaac, o protagonista de A Propósito de Llewyn Davis, dos irmãos Coen), precisamente para avaliar os parâmetros de comportamento de uma mulher-robot que ele criou, apelidando-a de Ava (Alicia Vikander, a actriz sueca que protagonizou Um Caso Real, de Nikolaj Arcel, filme que representou a Dinamarca nas nomeações para o Óscar de melhor filme estrangeiro de 2012).
Que acontece, então? Ao observar Ava, um corpo de entranhas metálicas, mas com formas, movimentos e modos graciosamente femininos, Caleb vai ser conduzido a perguntar (e a perguntar-se) se ela é capaz de formular juízos de valor sobre o seu criador. Mais do que isso: através de uma inesperada e perturbante erotização de gestos e olhares, Caleb é levado a supor que Ava sente por ele qualquer “coisa” que não será estranha às vibrações humanas, demasiado humanas, da atracção amorosa.
All Is Full of Love
Aquilo que parece ser uma história de “antecipação”, decorrente de convenções consagradas no interior da ficção científica, vai-se transformando numa inesperada fábula erótica. Afinal de contas, Ava é uma entidade que obedece a todos os pressupostos científicos do seu criador ou, além do que o pensamento lógico inerente aos seus circuitos, integrou também as nuances afectivas do mundo humano? Ou ainda: a mecânica da inteligência artificial já se deslocou para os imprevisíveis ziguezagues da inteligência emocional?
Mesmo evitando revelar o desenlace de tão perturbante intriga, importa sublinhar que Ex Machina encena os seus protagonistas numa paisagem marcada por uma profunda nostalgia da natureza. Assim, é um facto que o laboratório de Nathan se distingue pela gélida geometria de um local concebido de acordo com regras do mais absoluto controle; ao mesmo tempo, está incrustado numa zona de densa e exuberante vegetação, como se aquele fosse o derradeiro recanto de um paraíso para sempre perdido.
A personagem de Ava (será preciso referir que o nome sugere um primitivismo feminino que não é estranho ao som e à grafia de “Eva”?) impõe-se como símbolo de uma verdade primordial que, afinal, as leis do universo masculino parecem ter esquecido. A esse propósito, não deixa de ser curioso referir que a sua figura pode suscitar paralelismos com os mais diversos domínios do audiovisual contemporâneo. Um dos mais sugestivos está na história da música: no teledisco de All Is Full of Love (1999), de Chris Cunningham, Björk surge na pele (?) de um robot cujo corpo (?) vive uma aproximação inequivocamente sexual com outro robot. Provavelmente, a história da tecnologia e das máquinas é apenas uma derivação metálica da história dos corpos e respectivos enigmas.