Os documentários de Frederick Wiseman resultam de um muito particular sistema de trabalho: no caso de National Gallery, o seu método revela os bastidores de uma instituição, reavaliando os modos de olhar a pintura — esta entrevista (realizada no Festival de Cannes de 2014) foi publicada no Diário de Notícias (21 Maio), com o título '“Filmar é um modo de pesquisa”'.
Quando vemos o seu filme National Gallery, sentimos uma estranha e fascinante conexão entre os rostos que estão nos quadros e os rostos dos visitantes — sentiu, de alguma maneira, que estava a fazer uma espécie de pintura para o séc. XXI?
Enfim, não poderei dizer que pensei no assunto exactamente dessa maneira, mas é um facto que pensei nas relações entre as imagens de agora e as pinturas. Mais do que isso: pensei que, realmente, passou a ser possível fazer retratos através do cinema. Claro que há relações complexas entre as pessoas que estão nas pinturas e aquelas que circulam na galeria... Lembro-me, por exemplo, daquela cena em que uma guia refere que as figuras do quadro Os Embaixadores [Holbein, 1533] fizeram pose para “tirar uma fotografia”, o que não deixa de ser uma maneira sugestiva de dizer que a fotografia não existia.
Ao entrar na National Gallery, com a sua câmara e o aparelho de registo sonoro, tinha definido alguma estratégia de filmagem?
Posso dizer que segui um caminho idêntico ao de todos os meus filmes: ando pelo espaço durante algum tempo e filmo bastante, mesmo sabendo que há muitas coisas que não vão ficar na montagem final. Não sei se isso de pode considerar uma estratégia... Antes de fazer o filme nunca tinha visitado os bastidores da National Gallery, não sabia nada sobre o seu departamento científico ou o restauro dos quadros — nessa medida, filmar é também um modo de pesquisa.
Frederick Wiseman / Cannes 2014 (FOTO: JL) |
Portanto, a estrutura do filme apenas surge através da montagem.
Apenas surge no fim da montagem. Em boa verdade, nem sequer penso na estrutura antes de concluir a montagem de todas as cenas que, em princípio, vou conservar na montagem final — e isso pode demorar seis a nove meses.
Em algumas cenas, parece que utilizou duas câmaras...
De facto, não: é tudo feito com uma única câmara. A sensação de duas câmaras, se existe, resulta da montagem. Isto porque, durante a rodagem, devemos pensar em mudar de posição, tendo em conta, precisamente, a montagem. Posso mesmo dizer que aprendi a filmar através da montagem.
Sente que as pessoas filmadas de alguma maneira resistem à sua presença?
É uma velha questão, claro, saber se a câmara e os microfones mudam os comportamentos. Em função da minha experiência, terei que dizer que não. Isto porque posso passar 12 horas por dia nos lugares que filmo — se filmarmos 3 horas por dia, é imenso. Na prática, há constantes repetições de comportamento. Além do mais, não creio que as pessoas tenham a capacidade de mudar os seus comportamentos: se não querem participar, limitam-se a dizer que não ou a sair de cena. Por fim, se chego à montagem e deparo com um comportamento que me parece falso, “inventado” para a câmara, é muito simples: não o uso.
E o que acontece antes das filmagens? Como é que consegue circular por aqueles espaços?
Tenho um segredo: peço licença para filmar [riso].
Mas as equipas de televisão também pedem licença e os resultados são bem diferentes.
É que eles pedem para fazer entrevistas, e eu não faço entrevistas. Chegam com luzes, e eu não as uso. E são uma equipa de seis ou sete pessoas, enquanto no meu caso somos apenas três — muitas vezes, a terceira pessoa nem sequer está na sala em que estamos a filmar.