segunda-feira, maio 11, 2015

"A Missão" contra "Os Vingadores"

De que falamos quando falamos de "cinema-espectáculo-popular"? A reedição, em DVD, de A Missão (1986) poderá ser um bom pretexto de reflexão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Maio), com o título 'Celebrando um filme épico rodado em 1986'.

Que mudou no cinema popular? A pergunta está cheia de armadilhas, quanto mais não seja porque, em diferentes discursos, o adjectivo “popular” surge envolvido com os mais contrastados contextos, significados e valores. Limito-me, aqui, a recolocar a questão a propósito de um grande sucesso que já tem quase trinta anos, recentemente relançado no mercado do DVD: A Missão (1986), filme épico de Roland Joffé sobre a missão de um padre jesuíta na América do Sul, em meados do século XVIII, tentando proteger uma tribo ameaçada por práticas esclavagistas, nomeadamente da coroa portuguesa.
Há duas ou três diferenças muito básicas de A Missão em relação, por exemplo, a Os Vingadores: A Era de Ultron (actualmente em exibição nas salas). E escusado será dizer que nenhuma dessas diferenças decorre do facto de o trabalho de Joffé constituir um exemplo clássico de abordagem de factos históricos. A esse propósito, importa contrariar o simplismo da ideologia (televisiva) que tende a considerar que a inspiração “histórica” é uma espécie de caução automática para se fazer uma narrativa “séria”.
A primeira e fundamental diferença tem a ver com o simples gosto de construir personagens. O confronto entre o padre Gabriel (Jeremy Irons) e o mercador de escravos Rodrigo Mendoza (Robert De Niro) não é um mero conflito maniqueísta para simbolizar a “história” — somos confrontados com figuras de invulgar complexidade cuja inscrição naquele contexto é sempre dinâmica, em permanente processo de transfiguração. Será preciso recordar que A Missão é um filme escrito por um mestre chamado Robert Bolt (1924-1995), argumentista de clássicos de David Lean como Lawrence da Arábia (1962) e Doutor Jivago (1965)?
Produtos como Os Vingadores, bem pelo contrário, reduziram as suas personagens a meros índices de marketing. E também não será preciso repetir que nada disso resulta das suas raízes na BD — nenhuma personagem é mais ou menos interessante em função do contexto (histórico ou ficcional) em que surgiu. Acontece que uma personagem é algo mais do que um “boneco” capaz de dar origem a um cartaz apelativo: a sua energia é indissociável das tensões que se estabelecem entre o seu programa de acção e as componentes dramáticas do contexto em que se move.
Contexto, justamente — eis o que mudou de forma brutal. Em Os Vingadores, já não há qualquer concepção cenográfica: o espaço passou a ser tratado como uma arbitrariedade digital em que se pode mudar de uma imagem para outra apenas para exibir os “poderes” da tecnologia. No pólo oposto, A Missão é ainda um filme em que a aventura narrada se confunde com os riscos aventurosos da própria rodagem (em exuberantes cenários naturais da Colômbia, Argentina, Brasil e Paraguai). As suas belíssimas imagens valeram, aliás, o Oscar de melhor fotografia a Chris Menges, celebrando de forma exemplar a noção básica segundo a qual o cinema é, antes do mais, uma revelação visual.