Como "transpor" A Gaivota para a América dos anos 80? Eis o interessante desafio assumido pelo actor/argumentista/realizador Christian Camargo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Abril).
Anton Tchekhov nos EUA? Em 1984? Com Ronald Reagan a fazer campanha para a sua reeleição? É verdade: Dias e Noites nasce do projecto de transpor as linhas gerais de A Gaivota (que Tchekhov escreveu em 1895) para uma paisagem rural americana, na Nova Inglaterra, observando as atribulações de uma família marcada por muitas clivagens de gerações, sensibilidades e valores.
ANTON TCHEKHOV (1860-1904) |
Não será por acaso que este é um projecto posto em marcha por um actor, Christian Camargo (nascido em Nova Iorque, em 1971), aqui a assinar o seu primeiro trabalho de realização (conhecemo-lo, por exemplo, de Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow, e também de séries como Dexter e House of Cards). Trata-se de explorar as mais discretas nuances das personagens, criando condições para os actores valorizarem os enigmas do texto, ao mesmo tempo expondo as singularidades de cada corpo, numa dinâmica em que a pose e o silêncio podem ser tão importantes como o fluxo da palavra.
Além de assinar o argumento, Camargo interpreta também uma das personagens. E conta com um leque invulgar de talentos, incluindo as veteranas Allison Janney e Cherry Jones, o bem regressado William Hurt, a admirável Juliet Rylance (mulher de Camargo na vida real) e ainda Katie Holmes, intérprete de delicadas subtilezas que não pode ser reduzida ao rótulo de “ex-mulher de Tom Cruise”.
Vale a pena acrescentar uma nota sobre a má recepção que, na sua estreia, Dias e Noites encontrou junto de alguns críticos americanos (leia-se o texto de Stephen Holden no New York Times, 25/09/2014). Desde logo, para lembrar que falar da “recepção da crítica” (seja a propósito de que filme for) é sempre um gesto mentiroso e demagógico: a “crítica” não é um rebanho de gente que pensa toda para o mesmo lado, estando marcada por muitas e significativas clivagens. Depois, para sublinhar o facto desconcertante de um filme tão enraizado em dois valores fulcrais do classicismo — o actor e a escrita do argumento — poder ser acusado de pretensiosismo. Memória, precisa-se.