O teledisco de Ghosttwon é mais um exemplo brilhante da colaboração de Madonna com o realizador Jonas Akerlund — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Abril), com o título 'Madonna reinventa-se em cenário pós-apocalíptico'.
Há dias, Madonna esteve no programa da NBC, The Tonight Show, numa conversa com Jimmy Fallon, deambulando desde as singularidades do novo álbum Rebel Heart até à sua estreia como “profissional” de stand-up comedy. Com um guarda-roupa recheado de objectos metálicos, habitualmente associados ao rock mais hard, usava também rendas e meias que, afinal, evocavam a sua imagem de marca no começo da carreira, em meados da década de 80. Aliás, num delicioso exercício revivalista, Madonna, Fallon e The Roots (banda residente do programa) interpretaram uma divertida versão de Holiday, tema de 1983 agora recriado apenas com instrumentos utilizados no ensino infantil da música.
Todos estes elementos reflectem um método de trabalho que Madonna tem apurado e depurado ao longo dos anos, por certo adquirindo uma nova dimensão simbólica no interior do seu próprio envelhecimento (completará 57 anos no dia 16 de Agosto). Habitualmente reconhecida como protagonista de novas tendências, geradora de muitos efeitos de moda, ela só o é através de uma invulgar e inventiva capacidade de integração de elementos mais ou menos primitivos da cultura popular e, em particular, dos seus sistemas iconográficos.
O mais recente exemplo desse vai-vém está no magnífico teledisco de Ghosttown, divulgado também esta semana. A canção pode ser definida como a celebração de um par no cenário pós-apocalíptico da “cidade fantasma” a que se refere o título — a letra descreve os protagonistas como “duas almas” a sobreviver depois da destruição “total” (When it all falls down / We’ll be two souls in a ghost town).
Usando vestes de inspiração vitoriana, Madonna surge num cenário que, por calculado paradoxo, evoca componentes da ficção científica cinematográfica, por fim encontrando um homem (Terrence Howard, protagonista da série televisiva Empire) cuja ameaça se vai dissolver num súbito apelo à dança. Perpassa por Ghosttown um desejo de harmonia que, através da presença de uma criança, envolve a hipótese de reconversão do próprio espaço familiar (numa curiosa rima com o teledisco de Secret, dirigido por Melodie McDaniel em 1994). Mais do que isso: a paisagem urbana, mesmo em ruínas como aqui acontece, volta a emergir como cenário “natural” de Madonna.
Certamente não por acaso, o teledisco de Ghosttown tem assinatura do sueco Jonas Akerlund, tão importante na sua encenação como personagem urbana, desde logo nessa obra-prima que é o teledisco de Ray of Light (1998), numa performance a meio caminho entre o documental e o fantástico cujo tema é, afinal, a pulsação de uma grande metrópole. Akerlund filmou-a, por exemplo, em Music (2000) e Jump (2006), variações irónicas sobre os sinais da cultura urbana, sem esquecer que é também de sua autoria o prodigioso teledisco de American Life (2003), cuja versão original permanece “censurada” (embora disponível no YouTube). Madonna segundo Akerlund é, de uma só vez, uma figura realista e um fantasma errante — a cultura pop vive dessa ambivalência.