House of Cards reflecte muito da nossa descrença na política e nos políticos, funcionando, nessa medida, como um espelho perturbante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Abril), com o título 'Retrato íntimo do político como assassino'.
Em Fevereiro de 2014, no momento da estreia da segunda temporada de House of Cards (as duas primeiras temporadas passaram a estar disponíveis no mercado português do DVD), Beau Willimon, criador e argumentista da série, deu uma entrevista a Chris Harvey, do jornal britânico The Guardian, condensando de modo radical os temas em jogo, em particular na ascensão da personagem de Frank Underwood (Kevin Spacey) nos bastidores de Washington. Dizia ele, sobre a ânsia de poder de Underwood: “Todos os políticos são assassinos ou têm de possuir a vontade de assassinar. O que encontramos aqui é uma dramatização dessa coisa que lhes permite fazer o indizível, seja facilitar a morte de um congressista ou mandar 100 mil soldados para a guerra”.
São palavras que metem medo. Por mais cândida que seja a nossa visão da minoria dos seres humanos que governam os destinos da maioria, algo em nós questiona até onde podemos generalizar as palavras de Willimon. Até porque recorda também que os efeitos da acção dos políticos transcende, e muito, a relação com a instituição militar: “As pessoas podem morrer doutras maneiras. Podem morrer de desespero. A pobreza continuada pode levar-nos ao cemitério. Feitas as contas, a política é uma indústria de vida ou morte”.
Não tenhamos ilusões. House of Cards é, de facto, um primoroso feito televisivo, envolvendo talentos do cinema como David Fincher (produtor executivo e realizador dos dois primeiros episódios). Em qualquer caso, o seu impacto global não pode ser desligado de um sentimento de descrença no trabalho dos políticos que, sabêmo-lo bem, circula muito para além de qualquer fronteira geográfica ou cultural. Aliás, convém lembrar que House of Cards transpõe para o contexto americano a série homónima da BBC, criada em 1990 por Andrew Davies e Michael Dobbs, a partir de um romance de Dobbs (colaborador e conselheiro de Margaret Thatcher).
Provavelmente, e para além da desgastada confiança com que contemplamos muitas personalidades da cena política, um dos factores decisivos para a nossa projecção emocional nas personagens de Frank e sua mulher Claire Underwood (Robin Wright) é de natureza muito íntima. Mais do que íntima: pulsional. Em boa verdade, nada do que Frank ou Claire fazem pode ser desligado de uma procura obstinada e, à sua maneira, aristocrática das mais secretas formas de prazer.
Será preciso acrescentar que tudo isso confere a House of Cards uma dimensão visceralmente “shakespeariana”? E não apenas porque Macbeth e Ricardo III são, aliás, peças frequentemente citadas como inspiração da série original. Sobretudo porque contemplamos aqui a tragédia mais radical do exercício do poder político: qualquer forma de representação do colectivo através de um quadro de dirigentes implica uma secundarização, prática e simbólica, dos representados. Tal não bastará para deitarmos fora a democracia com a água da governação, mas convenhamos que somos impelidos a questionar muitas das nossas tradicionais certezas políticas. Até porque, sejamos honestos, não conseguimos não gostar de Frank Underwood.