De que falamos quando falamos de personagens televisivas? E como é que elas existem para o espectador? — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (30 Janeiro).
1. Apesar de não ser um fenómeno sancionado pelo ruído mediático, a série criada por Jill Soloway, Transparent (TV Séries), pode muito bem vir a entrar na história do audiovisual como um marco na evolução da ficção televisiva. Estamos, de facto, perante um produto pioneiro de um novo modelo de produção e distribuição: criada para o Amazon Instant Video (serviço disponível nos EUA, Reino Unido, Áustria, Alemanha e Japão), a série começou por existir como objecto de aluguer ou venda para assinantes do site Amazon.
Dito de um modo necessariamente paradoxal: a ficção televisiva está também a acontecer por vias que já não são especificamente televisivas, uma vez que se enraízam no domínio planetário da oferta online. Por uma ironia que vale a pena sublinhar, Transparent constrói-se em torno de uma personagem de muitas ambivalências (interpretada pelo magnífico Jeffrey Tambor), também ela à procura de um novo lugar na dramaturgia familiar e social. Assim, o anti-herói da série é um pai de família que, já com os filhos em idade adulta, decide assumir o facto de ser um homem que, na sua verdade mais íntima, se sente uma mulher. Num subtil registo de comédia, assistimos à instalação da inesperada “transparência” que o título sugere, num processo em que as matrizes clássicas da família são, ao mesmo tempo, questionadas e relançadas. Não é uma ficção moralista, muito menos panfletária — apenas uma narrativa alheia à formatação telenovelesca, celebrando a infinita pluralidade do factor humano.
2. Num canal dedicado ao cinema (TV Cine), deparo com uma cópia imaculada do belíssimo Margarida Gauthier/Camille (1936), um dos títulos emblemáticos da carreira de Greta Garbo, sob a direcção de George Cukor. No deserto cinéfilo em que vivemos, já nem me questiono sobre o conhecimento efectivo de um mestre como Cukor. Mas não consigo evitar a angústia de imaginar que a maioria dos espectadores não associa o nome de Garbo a nada de consistente. Espero estar enganado.