Como dar a ver a distância entre o que se filma e o lugar a partir do qual se organiza o material filmado? É esse o drama nuclear de Água Prateada - Um Auto-Retrato da Síria — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'À procura de outras imagens da guerra na Síria'.
É sempre compensador deparar com um filme como Água Prateada – Um Auto-Retrato da Síria, de Ossama Mohammed e Wiam Bedirxan, capaz de resistir aos automatismos narrativos e simbólicos de muita informação televisiva. Porquê? Precisamente porque, não poucas vezes, essa informação se dispensa de reflectir sobre o que significa recolher e dar a ver imagens (e sons) de lugares mais ou menos distantes. Nela se escamoteia, afinal, o drama narrativo, de uma só vez ético e estético, que emerge entre o “aqui” em que nos situamos e o “algures” que damos a ver — drama, convém lembrar, enunciado de modo exemplar, por Jean-Luc Godard (no período em que colaborou com Jean-Pierre Gorin) através do filme que se intitula, justamente, Ici et Ailleurs (1976).
O menos que se pode dizer de Água Prateada é que nasce dessa mesma dicotomia, vivida pelos dois realizadores: por um lado, Ossama Mohammed, exilado em Paris; por outro lado, Wiam Bedirxan, uma professora primária de origem curda, da cidade de Homs, que aí viveu e filmou a extrema violência do confronto das forças de oposição com as tropas do presidente Bashar al-Assad.
Os dois começaram a dialogar num chat da Internet. Como Mohammed recorda na sua nota de apresentação do filme, Bedirxan perguntou-lhe, a certa altura: “Se a sua câmara estivesse aqui, em Homs, o que estaria a filmar?” Daí nasceu um singularíssimo projecto de produção: primeiro, ela começou a recolher registos da desesperada situação em Homs, a maior parte deles obtidos por cidadãos anónimos através de telemóveis e postos a circular na Internet (Mohammed acredita que algumas cenas de atrocidades terão sido registadas por membros das forças de segurança do governo); depois, ele, em Paris, à medida que recebia os materiais, ia trabalhando na sua organização e montagem.
Na prática, Bedirxan só conseguiu sair de Homs depois do projecto concluído, de tal modo que o primeiro encontro dos dois realizadores aconteceu apenas durante o Festival de Cannes (16 de Maio), quando da apresentação, em sessão especial da selecção oficial, de Água Prateada (o título inspira-se no significado, em curdo, do nome da realizadora).
Há no filme uma energia humanista que se enraíza na secura informativa das imagens, por vezes muito perturbantes. Ao mesmo tempo, tal energia surge limitada por uma redundância simbólica que tem a sua principal expressão na longa sequência em que a câmara acompanha uma criança pelos escombros de Homs — a certa altura, a criança é mesmo encenada no lugar convencional do repórter que, numa espécie de caução descritiva, aponta a dedo aquilo que a câmara regista. Daí o balanço paradoxal: apesar do seu inequívoco valor de testemunho, Água Prateada é também um objecto que não consegue encontrar respostas consistentes para os problemas de linguagem que suscita.