quarta-feira, novembro 12, 2014

Memórias do "thatcherismo"

Como filmar a aliança entre gays e mineiros na Grã-Bretanha de Margaret Thatcher? Pois bem, recuperando os valores mais genuínos da comédia social — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Novembro), com o título 'Gays e mineiros contra Thatcher em nova comédia inglesa'.

Desde a sua revelação na Quinzena dos Realizadores, no passado mês de Maio, em Cannes, o filme inglês Orgulho (Pride) distinguiu-se por uma peculiar conjugação de valores: por um lado, há nele a capacidade de evocar um momento crítico da governação de Margaret Thatcher; por outro lado, apresenta-se como uma contagiante renovação dos modelos clássicos da comédia social inglesa.
De acordo com a tradição dos estúdios ingleses, tudo passa, antes do mais, por uma invulgar galeria de actores. Assim, no elenco, surgem veteranos como Bill Nighy e Imelda Staunton, a par de nomes como Dominic West, Paddy Considine ou Andrew Scott que conhecemos como competentes secundários das mais diversas produções cinematográficas ou televisivas.
De qualquer modo, o impacto de Orgulho decorre da singular aliança política que encena, aliás inspirando-se em factos reais. O pano de fundo é a greve dos mineiros que durou cerca de um ano (1984/85), reagindo contra a intenção do governo Thatcher de encerrar várias minas, ameaçando agravar o desemprego que assolava o sector. É nesta conjuntura que algumas associações de defesa dos direitos de gays e lésbicas decidem apoiar os mineiros, organizando uma campanha que ficou conhecida pela sigla LGSM (Lesbians and Gays Support the Miners).
Realizado por Matthew Warchus, um realizador com enorme prestígio como director de palco (distinguido com um prémio Tony, em 2009, pela encenação de O Deus da Carnificina, de Yasmina Reza), Orgulho enfrenta com ironia, humor e sentido crítico as tensões internas do processo que cimentou a aliança entre as associações de gays e lésbicas e os mineiros. Embora o movimento tenha tido expressão em todo o território britânico, o filme concentra-se na acção de um grupo gay que decide rumar a Onnlwyn, uma pequena povoação do País de Gales, aí manifestando o seu apoio aos mineiros locais.
Ao longo das décadas, as melhores comédias saídas dos estúdios ingleses — lembremos o clássico O Quinteto Era de Cordas (1955), com Alec Guinness e Peter Sellers sob a direcção de Alexander Mackendrick — souberam sempre preservar uma muito sólida base realista. E isso volta a acontecer em Orgulho: é bem verdade que as peripécias vão do anedótico ao simbólico (o filme não esconde que alguns mineiros manifestaram diversas formas de resistência a uma eventual cumplicidade política com gays e lésbicas), mas o filme nunca perde a sua relação com uma realidade social muito concreta e, escusado será dizê-lo, também muito complexa. Afinal de contas, no cinema inglês, a abordagem crítica do “thatcherismo” começou ainda com a Sra. Thatcher no poder. Basta citar o caso exemplar de A Verdade dos Factos (1983), de Richard Eyre — com uma coincidência a ter em conta: tal como Warchus, Eyre é também um criador com uma importante carreira teatral.