domingo, outubro 26, 2014

Cidades abandonadas (ao piano)


A difícil “rotulagem” das músicas do nosso tempo é certamente uma consequência de uma idade em que, derrubados os muros e acelerados (e levados mais longe) os diálogos entre quem faz música e as referencias que pode tomar como matéria prima, a criação não só procura caminhos novos (coisa que não é novidade na história da música, naturalmente) mas não teme mais velhos complexos de género, o fluir de ideias marcando assim as novas agendas de criação e descoberta. Havendo naturalmente quem goste de trabalhar no seu espaço de eleição, a verdade é que a música orquestral, de câmara, instrumental (e até mesmo a ópera e outras formas vocais) nestes primeiros anos do século XXI tem assistido a frequentes exemplos de carreiras que já passaram – ou continuam a passar – pelos espaços do pop/rock, hip hop ou electrónicas dançáveis. Haushka é um exemplo desta nova forma de estar bem em vários mundos. De seu nome Volker Bertelmann, este alemão a caminho das cinco décadas de vida (faltam 2 anos para os celebrar) começou por estudar piano, teve as suas bandas – uma delas explorando as linguagens do hip hop – mas foi ao regressar ao piano que trilhou o caminho que dele fez uma referência entre os músicos do nosso tempo. Ele confessa que nunca tinha ouvido falar em piano preparado quando pela primeira vez inseriu objetos entre as cordas para produzir sons diferentes. Com o tempo descobriu John Cage – talvez o nome com mais marcante obra para piano preparado – e absorveu muitas das suas ideias... Aos discos começou a levar as suas peças para piano preparado há cerca de dez anos, a sua discografia caminhando depois no sentido de explorar os espaços da música de câmara (a violinista Hillary Hahn chegou a ser uma das suas colaboradoras), não fugindo do desafio de procurar possíveis ecos da atual música electrónica entre as suas composições (chegou mesmo a lançar um álbum de remisturas de temas de Salon des Amateurs, de 2010, onde participaram figuras como Herbert, Alva Noto ou Vladislav Delay). Abandoned City, o seu novo disco, assinala um reencontro com o piano preparado, refletindo as novas composições sinais de assimilação de algumas das suas outras experiências recentes. Disco de reencontros, nasceu essencialmente de improvisações, que ele mesmo registou no seu estúdio caseiro no espaço de dez dias. Memórias e ecos cruzam-se neste espaço dominado pela solidão e melancolia, que reflete ainda um sentido de expressão da solidão que representa o seu processo criativo, o título Abandoned City tendo nascido depois de ter reparado que as sensações que tinha ao ver fotos de cidades abandonadas se assemelhava ao que vivia quando se senta ao piano para compor. Ora sob uma pulsação mais marcada ora mais rendidas à contemplação, as composições traduzem um sentido cénico, revelando a abordagem ao piano de Hauskha o mundo de possibilidades que discos anteriores já tinham sugerido e que este talvez leve ainda mais longe.