Os protagonistas são Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), dois vampiros com séculos de vida e uma galeria de figuras da cultura entre os amigos de outros tempos. Ele vive na mesma Detroit que viu florescer a Motown, o techno e foi berço de Smokey Robinson, Alice Cooper, Sufjan Stevens ou Jack White (cuja primeira morada vemos mesmo entre as imagens). Ela está por Tânger, a cidade eleita de Paul Bowles e onde os Rolling Stones encontraram em finais dos sessentas os Master Musicians of Jajuka e, com o disco que com eles gravaram, encetaram um relacionamento de atenções entre os públicos pop/rock e sonoridades e músicos de outras geografias que, com os anos, acabaria por ser chamado como world music.
Ela vive entre livros e, em Tânger, tem mesmo como melhor amigo o “velho” Christopher Marlowe, interpretado por John Hurt. Ele é um músico que vive longe de tudo e todos. Coleciona guitarras elétricas dos anos 50 e 60. Grava num estúdio caseiro, habita a era dos downloads e do YouTube e acaba de lançar um white label (que na verdade é preto) [um white label é um vinil prensado sem qualquer indicação do que lá vem gravado numa etiqueta que, assim, fica em “branco”] para que a sua música possa ser escutada e comentada. Tal como no século XIX rompera brevemente o silêncio dando um adágio de uma peça a um jovem compositor. Que se chamava Franz Schubert...
Um filme de vampiros? Pelos protagonistas, sim. Mas na verdade este é um filme sobre dois seres que vivem à margem da sociedade (chamam zombies aos vivos) e que, cientes de que a dentada é coisa do passado, se alimentam através de médicos corruptos que lhes vendem sangue fresco.
Várias marcas do cinema de Jarmusch são evidentes, assim como a expressão de um relacionamento próximo com a música que lhe corre nas veias. Afinal, e basta passarmos por galerias de fotos do velho CBGB (o antigo clube nova- iorquino que viu nascer o punk), para repararmos que, entre Patti Smith, os Ramones ou os Talking Heads, o realizador era uma figura habitualmente ali presente.
Não espanta então que seja ele mesmo uma das forças centrais da belíssima banda sonora que acompanha o filme. Parte significativa da música é interpretada pelos Sqürl, a banda do próprio Jarmusch (incluindo ainda as presenças de Carter Logan e Shane Stoneback) e resulta de uma parceria com o compositor Jozef Van Wissem, minimalista holandês hoje residente em Brooklyn e que antes havia já colaborado com o realizador. Com a presença de Zola Jesus numa canção que irrompe de um alinhamento essencialmente instrumental (do qual se destacam ainda quer os momentos interpretados ou por Yasmina Hamdan ou por nomes dos cinquentas que são recordados em instantes dos filmes nos quais mergulhamos na coleção de discos de Adam), a banda sonora define um clima dominado por guitarras elétricas. Tal como nas imagens, a música aqui é sombria, vive de noite e sem pressa. É tranquila e presente, apesar de feita de ecos de elementos clássicos do rock’n’roll ou do R&B de outros tempos, com frestas de luz de um alaúde que ocasionalmente sublinha a presença do pólo marroquino que terá um peso marcante na história.
Sou “mais” uma rapariga da Stax [que da Motown], responde numa das várias passeatas de carro pela noite de uma Detroit moribunda a personagem interpretada por Tilda Swinton. Nas entrelinhas, e com todo o respeito pela obra da Motown, sublinha-se uma afirmação de identidade pela música. E é de verdades como esta que vive a alma de um filme absolutamente espantoso. Calmo e envolvente. Usando as figuras (e memórias) de dois vampiros que já viram muito, para connosco partilhar os desencantos do tempo presente.