terça-feira, junho 17, 2014

"Cabiria" tem 100 anos

Uma efeméride especial: o épico Cabiria, de Giovanni Pastrone, completa 100 anos de existência: um clássico que continua a fascinar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Junho), com o título 'Para redescobrir um épico italiano'.

Assinala-se este ano o centenário de um filme cuja herança vale a pena revisitar: Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, o épico italiano sobre a República de Cartago e as Guerras Púnicas (cerca de três séculos a. C.). Com intertítulos da responsabilidade do escritor Gabriele D’Anunzio, a sua acção centra-se nas atribulações amorosas da jovem Cabiria (Lydia Quaranta), afirmando um sentido dramático do espectáculo, aliado àquilo que era uma notável sofisticação técnica, cujas proezas continuam a surpreender e seduzir.
Não se trata, entenda-se, de festejar a efeméride pela efeméride. A ideologia televisiva dominante promove esse tipo de celebrações “cinéfilas”, a maior parte das vezes alimentando uma noção profundamente simplista e, em última análise, mentirosa: a história do cinema é apresentada como uma colecção de referências caricaturais que apenas serviram para conduzir à apoteose contemporânea dos “efeitos especiais”...
O filme de Pastrone exige-nos que reavaliemos os primórdios do cinema mudo — que são, afinal, os primórdios de todo o cinema —, em particular resistindo à ideia segundo a qual todas as transformações decisivas ocorreram no contexto particular (e fascinante, não é isso que está em causa) de Hollywood. Quando a cópia restaurada de Cabiria passou na secção de clássicos do Festival de Cannes, em 2006, Martin Scorsese (patrono desse restauro, promovido pela cinemateca de Turim) comentava a sua descoberta do filme, aludindo à necessidade de relativização histórica: “Há muitos elementos que tendemos a considerar, automaticamente, como invenções americanas: o épico de longa duração [Cabiria dura três horas], os movimentos da câmara, a luz difusa. Subitamente, tudo isso se encontra num filme feito dois anos antes de O Nascimento de uma Nação, de Griffith. Isto sem esquecer a descoberta do próprio Pastrone, uma figura maior na história primitiva do cinema.”
A revalorização de um filme como Cabiria constitui apenas um sintoma de um atitude que, creio, poderia e deveria ser favorecida em todos os contextos que veiculam alguma informação e promovem algum tipo de formação. E considerar que o espaço televisivo deve também responder (e corresponder) a tais questões não é um assunto cultural secundário, a não ser que algum político queira publicamente defender a violência moral do Big Brother e seus derivados contra a excelência do património cultural europeu.
O que está em causa, entenda-se, é o apagamento sistemático das memórias do cinema em contextos (inclusive de natureza jornalística) que passaram a viver dominados pela banalidade do fait divers e pela promoção das mais agressivas atitudes de ignorância. O silêncio sobre o centenário de Cabiria é apenas um detalhe de um universo em que o cinema e, de um modo geral, as nossas raízes culturais são objecto de quotidiano recalcamento.

>>> No Internet Archive existe uma cópia de Cabiria, com subtítulos em inglês, de qualidade de imagem muito razoável, embora de duração inferior (em cerca de uma hora) à versão restaurada apresentada em Cannes.