quinta-feira, junho 19, 2014

No mundo de Guillaume Gallienne (2/2)

Et voilà: A comédia francesa existe, resiste e persiste. E, mesmo apenas através do seu primeiro filme como realizador, Guillaume Gallienne distingue-se como um dos seus grandes talentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Junho), com o título 'Atribulações de mães e filhos'.

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Curiosa conjuntura cinematográfica, esta que coloca lado a lado dois títulos tão distintos e distantes como Maléfica, sofisticada revisão de A Bela Adormecida com Angelina Jolie no papel da bruxa, e A Mamã, os Rapazes e Eu, comédia genuinamente francesa em que Guillaume Gallienne vive as agruras de um filho que, devido à pressão materna, é levado a assumir-se como homossexual...
Escusado será inventariar as óbvias diferenças entre tão singulares objectos. Atentemos apenas na perturbação simbólica que os aproxima: são contos morais que, discretamente, mas com inesperada contundência, desafiam uma clássica concepção materna, desenhada no cruzamento de uma imagem protectora com uma promessa de inocência.
No caso de Maléfica, assistimos à perversa reconversão da mãe que estava, ou esperávamos encontrar, do lado do Mal. Agora, em A Mamã, os Rapazes e Eu, dir-se-ia que a figura materna é aquela que, na sua proximidade (maternal, hélas!), menos vê ou sabe ver o seu filho.
O caso do filme de Guillaume Galienne é tanto mais desconcertante quanto parece enraizar-se numa lógica muito politicamente correcta — o direito à diferença sexual — para, a pouco e pouco, nos levar a considerar essa diferença, não exactamente como um “direito”, mas sim como uma conjugação insólita de saber e não saber, consciência e inconsciência, transparência e ambiguidade.
O conto moral edifica-se, assim, através dos mais nobres valores da tradição cómica (francesa e não só). A começar pela elegância de um depurado burlesco: cada corpo é sempre o lugar de um jogo simbólico entre um sentido e o seu contrário. No limite, Guillaume alcança a possibilidade de ser olhado para além de qualquer “bilhete de identidade” sexual, conquistando o mais despojado valor: o direito à indiferença.