quinta-feira, junho 19, 2014

Herberto Helder e a arte da impureza

"Tudo quanto neste livro possa parecer acidental é de facto intencional (...)" — Herberto Helder resiste às ilusões do experimentalismo e também às delícias da arbitrariedade formal; mesmo que se trate de abrir caminho às forças do inconsciente, a poesia nasce sob o signo da intencionalidade.
Daí que o seu novo livro — A Morte sem Mestre (Porto Editora) — se apresente como uma digressão factual sobre o sujeito que escreve, ainda que o facto possa deslizar, não para o abstracto, mas para o imaterial. Não era Roland Barthes que lembrava, justamente que "escrever é colocar o sujeito em citação"?
Daí também a multiplicidade deste livro breve e fascinante, redigindo a vida sempre sob o signo de uma morte rigorosa, pairando como um pássaro que não desiste de contemplar as atribulações do sujeito que se escreve e descreve, expõe e oculta. Umas vezes, sentimos que a banalidade do quotidiano se transfigura em força de um mistério radical; outras, as razões da ordem política (entenda-se: discursiva) são decompostas em contidas apoteoses de crueldade e sarcasmo. No limite, a morte deixa dizer-se como possível tarefa caseira, serena, sem compulsão: "a última bilha de gás durou dois meses e três dias / com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado / mas eis que se foram os três dias e estou aqui".
Em tempos de instrumentalização mediática de tantas palavras, sacrificadas em rituais obscenos e espectaculares, ignorantes da grandeza patrimonial do próprio espectáculo, Herberto Helder celebra o desafio, não de reproduzir o real, mas de acrescentar real ao real, aceitando a espessura carnal da escrita — "Peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido / seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro". Resta sabermos ser dignos de tão admirável impureza.
PAUL KLEE
O Que É Que Lhe Falta?
1930