sábado, junho 07, 2014

Crónica da morte anunciada do PS

GOYA
Natureza Morta - Balcão de um Talho
1810-12
1. Sou dos que pensam que a dicotomia direita/esquerda é escassa para viver o espaço da política na sua dimensão primordial: a boa gestão da polis. Mais do que isso: penso que a disponibilidade para pensar também para além de tal escassez é uma das heranças mais genuínas — e também mais menosprezadas — do espírito do 25 de Abril.

2. Não se trata de arrumar a questão em função dos mitos do "conservadorismo" obrigatoriamente à direita e da "capacidade de transformação" obrigatoriamente à esquerda — a conservação de uns pode ser a transformação de outros, a mobilidade de uns pode não ser estranha à quietude de outros.

3. Discutir tal dicotomia não é resvalar para a mediocridade populista do "são-todos-iguais" nem, muito menos, menosprezar o(s) pensamento(s) e energia(s) que existem — sempre existiram — em muitas personalidades da(s) direita(s) e da(s) esquerda(s).

4. Regressam estas questões a propósito daquilo que está a acontecer no interior do Partido Socialista. Independentemente das razões e legitimidades de cada uma das tendências em confronto (e também das heranças decorrentes dos respectivos percursos ideológicos), tudo foi desencadeado a partir de um belicismo televisivo que, pelos vistos, ninguém, de esquerda ou direita, quer questionar. A saber: a reconversão pueril, automática e compulsiva de um facto no seu oposto "polémico" — no dia 25 de Maio, por volta das dez horas da noite, soube-se que o PS tinha ganho as eleições europeias e, a partir do mesmo instante, alguns repórteres (e, em poucas horas, o país inteiro) instalavam uma gritaria que persiste: "Como é possível que o PS tenha tido um resultado tão desastroso?".

5. Que Passos Coelho e os seus seguidores mantenham um elaborado silêncio em relação a tudo isto, compreende-se. O mais espantoso — e metodicamente kafkiano — é que não haja ninguém do PS (a começar pelos dois candidatos a primeiro-ministro) com uma réstia de pensamento para dizer o óbvio: a entrada do PS na vertigem niilista das notícias confunde-se com a deriva suicida do próprio partido.

6. Com eleições primárias, congressos antecipados ou homéricos "debates" internos, o PS empurra-se, assim, para a sua ruidosa morte política, encenada em vistosos efeitos especiais de apurada concepção televisiva. O partido acomodou-se mesmo a viver, exangue, através de um calendário estupidamente democrático (a defesa da democracia não nos deve impedir de discutir a estupidez que a pode minar) que, na prática, vai colocar toda a sua existência num limbo de meses e meses em que a única mensagem possível será: "Esperem um pouco que nós já voltamos e, então, transfomaremos a utopia num futuro radioso..."

7. Para além da complexidade das conjunturas, na origem mais remota deste esvaziamento prático e simbólico do PS está a possibilidade de afirmação de uma diferença que, nos tempos heróicos do PREC, Mário Soares enunciou (mas que nem o próprio Mário Soares ousou conduzir ao seu desenlace mais lógico e racional). A saber: a demarcação do PS em relação a uma "família" de esquerda em que predominam a marca e as heranças históricas do Partido Comunista Português (ciclicamente pontuada por epifenómenos mais ou menos vistosos, ampliados pela estética televisiva dominante, como o Bloco de Esquerda).

8. Como se voltou a provar pela colagem do PS à mais recente moção de censura ao Governo apresentada pelo PCP, falta ao PS — a todo o PS — a coragem ideológica e institucional de dizer, serenamente e sem ambiguidades: "Não temos nada a ver com o espaço e as práticas actuais dos partidos comunistas".

9. Não é difícil vislumbrar o sentido do cenário instalado. Tudo isto pode conduzir a um efeito global de reorganização das dinâmicas eleitorais que, obviamente, o PCP já compreendeu e, com a sua tradicional disciplina, saberá ir reforçando: o heróico apagamento do PS — ocupado com as redentoras atribulações da sua "purificação" interna — irá reforçar todos os maniqueísmos direita/esquerda, criando as condições sociais e simbólicas para que as forças do actual Governo, discretamente no fundo da sala de aula, recuperem as percentagens eleitorais perdidas.

10. É triste ver como António José Seguro e António Costa aceitam, todos os dias, protagonizar o espectáculo de fulanização política em que o país passou a viver. Isto porque deixou de ser possível equacionar qualquer gesto político sem pensar a sua dimensão de tele-política — que a esquerda que eles representam, ou dizem representar, não seja capaz de prestar um segundo de atenção a tal estado das coisas, eis o que diz bem da trágica fragilidade do seu pensamento.