Ecrã da Plage Mace, para as sessões do Cinéma de la Plage (Foto: JL) |
[Texto publicado no DN, 25 Maio] Só por inocência ou cinismo jornalístico se poderá julgar que o essencial de Cannes se joga na passadeira vermelha. Mesmo sem menosprezar o aparato mediático que faz parte do mundo do cinema (et pourquoi pas?...), importa reconhecer ao festival o renovado mérito de funcionar como montra das convulsões temáticas e filosóficas do cinema contemporâneo. Para quê continuar a filmar, de facto?
Digamos que o vencedor Nuri Bilge Ceylan nos ajuda a responder, quanto mais não seja porque o seu trabalho vem lembrar que a histeria em torno da imagem e dos seus “efeitos” (especiais ou não) pode e deve ser contrariada pelo ancestral valor da palavra: Winter Sleep é um daqueles filmes fulgurantes em que o vai-vem das falas implica os dramas e silêncios deste mundo e do outro (e tendo em conta as suas subtis ressonâncias religiosas, dizer “um outro mundo” não é ironia gratuita). Dirá o senso comum que, precisamente, são “apenas” personagens a falar… Convém acrescentar que, face a sua vertigem interior, a acumulação de explosões e ruídos do mais banal “blockbuster” corresponde ao tédio absoluto.
Três outros filmes igualmente fulgurantes completaram, por assim dizer, o impacto de Ceylan: Adieu au Langage, a lição de liberdade de Jean-Luc Godard; Maps to the Stars, com David Cronenberg a descarnar as ilusões do próprio acto de fazer cinema; enfim, Deux Jours, Une Nuit, mais uma paciente saga laboral dos irmãos Dardenne que demonstra também que ter uma estrela do “outro” cinema (Marion Cotillard) pode ser a mais bela das contradições. Fiquemo-nos por isso, com as palavras de Claude Monet, lembrando que importa “não pintar o que vemos, já que nada vemos, mas pintar o facto de não vermos”. É Godard que o cita no seu filme e, podem crer, a herança do pintor esta bem entregue.
CLAUDE MONET Chegada do Comboio da Normandia, Gare Saint-Lazare 1877 |
JEAN-LUC GODARD Adieu au Langage 2014 |