quarta-feira, junho 04, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (parte 3)

Este texto é a primeira parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

“A música ié-ié não provocava politicamente, apenas comportamentalmente, e o poder não reagia, ou melhor, inteligentemente chamou a si os jovens”, conta Luís Pinheiro de Almeida, lembrando uma vez mais que foi o próprio regime “que organizou o Concurso Ié-Ié no Monumental, chamando os jovens para evitar a contestação”. Porque “enquanto tocavam guitarra, não se metiam na política”, dizia-se na altura, como ele mesmo relata. Mas nem tudo eram rosas. E quando os conjuntos “começavam a ter um mínimo de carreira com discos gravados e digressões pelo País, as Forças Armadas chamavam-nos para as suas fileiras, muitas vezes para a guerra, destruindo qualquer hipótese e/ou tentativa de carreira”. Luís lembra o caso “curioso” do Conjunto Académico João Paulo “que se voluntariou em massa para a tropa para não se separarem”.

Para o autor da Biografia do Ié Ié a Guerra Colonial não explica por si só uma não maior expressão destas formas de cultura jovem no Portugal de 60. “A estratégia do Regime foi bem delineada e mais bem executada com o tal Concurso no Monumental.” De resto, e como o livro mostra, o autor não deu conta “de um único conjunto ié-ié português com matiz política vincada, com excepção de um caso, individual, de Luís Rego”. A mensagem política, diz, “passava por outros patamares” e esses “sim, punham o Estado em sentido e a PIDE em alerta”. Fala em concreto de nomes como os de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília e, um pouco mais tarde, de José Mário Branco, José Jorge Letria, Padre Fanhais, Sérgio Godinho, Samuel e outros.

Se tematicamente o ié-ié não agitava muito as águas, musicalmente era um espaço em que tanto havia quem se encostasse a referências internacionais e quem, por outro lado, procurasse desbravar caminhos e definir uma linguagem própria. Na opinião do autor “os grupos que mais se conseguiram demarcar dos modelos estrangeiros e mostrar um som com mais evidente personalidade são os da chamada primeira fase do ié-ié, ou seja, antes dos Beatles”. São, em concreto, conjuntos como os Titãs, o Conjunto Mistério, os Blusões Negros, Espaciais, “os que electrizaram o cancioneiro popular português” e que, para si, “foram os grandes heróis, os originais, com ideias interessantes”. Depois, explica, houve “más cópias ou menos boas cópias dos Beatles, com evidentes exceções como os Ekos, Pop Five Music Incorporated, Quarteto 1111, Sheiks (nalgumas canções), Quinteto Académico, Claves, Zoo”.

O psicadelismo, que na segunda metade dos sessentas revelou nomes como os Pink Floyd, Love ou Grateful Dead e chegou também a cativar bandas como os Beatles ou Rolling Stones, teve também algum impacte entre nós, mas curto. Para Luís Pinheiro de Almeida os Chinchilas “foram os mais psicadélicos”, sublinhando que o movimento teve pouca repercussão em Portugal, “muito por causa da situação política” de então. “Se ela era cinzenta, como poderiam vingar as cores do psicadelismo?”, questiona. Contam-se por isso pelos dedos de uma mão “os conjuntos portugueses que conscientemente fizeram uma adesão ao psicadelismo”. Luís reconhece que esta sua opinião é controversa. Destaca depois A Chave como “uma grande banda psicadélica com um incrível jogo de luz em palco”. Os Jets “nem por isso, só se for pela capa do seu EP, uma das primeiras artes gráficas psicadélicas em Portugal e que deve ser única ou quase única no universo da discografia portuguesa”. Assinada por Carlos Fernandes, “já falecido”, esta capa “consta dos livros alternativos britânicos sobre psicadelismo”. Sobre o Quarteto 1111 diz que “foi a banda, por excelência, musicalmente psicadélica e portuguesa” e, avança mesmo, “provavelmente o melhor grupo português de todos os tempos”. A razão por que estão todas elas (que não dariam um livro com mais de 50 páginas, justifica) juntas numa Biografia do Ié-Ié “resume-se única e simplesmente a um critério baseado na comodidade e na praticabilidade”. Uma “saída limpa!”, comenta.

(continua)