quinta-feira, maio 01, 2014

De Françoise Hardy a François Ozon

Marine Vacth
Ficou como um dos filmes "esquecidos" no palmarés de Cannes/2013: com Marine Vacth no papel central, Jovem e Bela, de François Ozon, prolonga as sofisticadas componentes (melo)dramáticas do universo do realizador — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Abril), com o título 'Um filme com canções de Françoise Hardy'.

É provável que a imagem de Marine Vacth no cartaz do filme Jovem e Bela, as costas nuas, deitada numa cama, tenha trazido à memória de alguns espectadores uma pose semelhante de Catherine Deneuve em Belle de Jour (1967), de Luis Buñuel. A referência está para além de qualquer atitude copista: François Ozon é um cineasta consciente da riquíssima herança (melo)dramática que alimenta a sua obra e, não tenhamos dúvidas, sabe muito bem reconhecer os seus mestres — além de que conta com a própria Deneuve na extraordinária galeria de actrizes que já dirigiu.

Belle de Jour (1967)
Aliás, a evocação da obra-prima de Buñuel não se esgota em qualquer imitação figurativa: são as práticas de prostituição da personagem central que geram uma cumplicidade estrutural entre ambos os filmes. O que define essa cumplicidade não é a sua “temática”, mas sim a calculada transferência da ambivalência moral da protagonista para o espaço privado do espectador — afinal, o que está a acontecer?
A resposta está longe de ser transparente, quanto mais não seja porque as determinações do comportamento de Isabelle (Marine Vacth) parecem tão opacas para ela como para o espectador. Que procura Isabelle? Uma cruel “compensação” para a frustração da sua primeira experiência sexual? Uma punição masoquista? Uma vingança metódica contra a frieza machista? Talvez um pouco de tudo isso, sendo tudo isso tratado por Ozon como uma série de capítulos de um fascinante e contraditório resgate moral.
Não estamos, portanto, no domínio do retrato “psicológico”, mas sim no interior de uma delicada parábola sobre a insensatez do desejo sexual. Com alguma nostalgia romântica? Sim, sem dúvida, até porque cada um dos quatro capítulos de Jovem e Bela é pontuado por uma canção de Françoise Hardy.
Tal dimensão romântica terá contribuído para um certo apagamento mediático de Jovem e Bela desde que passou no Festival de Cannes de 2013. De forma mais ou menos implícita, o filme terá sido mesmo rotulado como uma variação “ligeira” da intensidade emocional que estava em A Vida de Adèle, de Abdellatif Kechiche (que viria a arrebatar a Palma de Ouro). Ora, sem querer ignorar o carácter excepcional do trabalho de Kechiche, importa lembrar que tudo nele se decide a partir de um realismo visceral, à flor da pele; no caso de Ozon, as componentes realistas estão ao serviço de uma lógica de conto moral em que o romantismo envolve o sentimento (ou pressentimento) de uma gélida proximidade da morte.
Tudo isso o aproxima um pouco mais de Buñuel, cineasta de um cepticismo moral que vai decompondo todas as formas de bondade humana para, sob as suas aparências, revelar a irrisão de qualquer entrega amorosa. Seja como for, é bem provável que Ozon não se reconheça em tal visão — afinal de contas, se Buñuel era avesso a qualquer “romantização” musical, no cinema de Ozon ainda é possível escutar Françoise Hardy.

>>> São estas as quatro canções de Françoise Hardy que pontuam os capítulos do filme Jovem e Bela:







* JE SUIS MOI (1973)