O Filho de Deus, com Diogo Morgado, não é exactamente um exemplo de cinema religioso, antes um objecto submetido à religião televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Março), com o título 'Imagens e sons da televisão'.
A presença de Diogo Morgado como intérprete da personagem de Jesus Cristo em O Filho de Deus, de Christopher Spencer, tem sido acompanhada por um fenómeno típico de uma ilusão muito portuguesa: estaríamos a assistir ao primeiro capítulo de uma grandiosa carreira em Hollywood... Qual é o problema de tão cândida visão? Nada a ver com Diogo Morgado, entenda-se — e só lhe podemos desejar a consumação das glórias que, utopicamente, alguns lhe atribuem. Acontece que nem sequer estamos perante um projecto genuinamente cinematográfico, mas face a uma série de televisão (A Bíblia) cujas dez horas de duração foram “transformadas” numa longa-metragem de 138 minutos. Mais do que isso: o espírito criativo que se exprime num objecto deste género está enraizado no academismo característico dos mais banais “digests” televisivos.
Que acontece, então? Não deixa de ser curioso, mas O Filho de Deus parece reflectir alguma informação cinéfila. Podemos mesmo detectar, aqui e ali, a inglória tentativa de “imitar” soluções narrativas de Cecil B. De Mille (a utilização simbólica dos céus) ou Martin Scorsese (o erguer do corpo crucificado de Jesus), sem esquecer a histeria de tinta vermelha que Mel Gibson achou por bem transformar em emblema formal do seu filme A Paixão de Cristo. O certo é que prevalece uma lógica simplista que reduz cada personagem a um penoso estereótipo que não estabelece qualquer relação pertinente com os lugares ou as outras personagens.
É esse, aliás, o aspecto mais desconcertante do filme: o de nos convocar para a travessia de uma visão do mundo conduzida pela disponibilidade afectiva e a compaixão moral, sem que exista a mais discreta sensibilidade para as especificidades de imagens e sons, corpos e actores, matéria e espírito.