quinta-feira, março 20, 2014

"True Detective": as imagens e a sua ausência

Criada por Nic Pizzolatto, com a primeira temporada dirigida por Cary Joji Fukunaga, a série True Detective é um caso invulgar de sofisticação narrativa e inquietação moral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título 'Notícias da Louisiana'.

Com a proliferação das séries televisivas, instalou-se toda uma mitologia que tende a valorizar automaticamente os casos em que se pode detectar algum “efeito de real”: as séries seriam mais interessantes, ou até mais importantes, quando são mais “verdadeiras”. Exemplo? Os Tudors — muito sangue corresponde, neste universo, a mais “verdade”.
Em boa verdade, tal visão não passa de uma variação menor sobre o naturalismo pueril que domina o pequeno ecrã. Veja-se como o facto de colocar um repórter, microfone na mão, tendo como pano de fundo um qualquer cenário “histórico”, continua a garantir fama a muitos jornalistas que teriam exactamente o mesmo discurso, esquemático, determinista e arfante, sentados no estúdio, frente a uma câmara.
Seja como for, o espaço televisivo é suficientemente diversificado para produzir as suas próprias resistências à dominação de tais dispositivos. A notável série da HBO, True Detective (a passar no TV Séries), é mais um belo exemplo de uma atitude criativa que passa por uma metódica interrogação dos contornos do real e da sua infinita complexidade individual e colectiva, material e simbólica.
A actividade dos dois detectives, interpretados em tom de perturbante inquietação por Matthew McConaughey e Woody Harrelson, surge-nos através de um espantoso ziguezague temporal. Sujeitos a um inquérito que envolve factos ocorridos 17 anos antes, o seu comportamento coloca em cena uma questão tão fascinante quanto recalcada pelo “mundo de imagens” em que vivemos: a representação da nossa existência passa tanto pelas imagens como pelas palavras que aplicamos para as descrever ou, no limite, quando já não há imagens.
Cúmplice de toda uma tradição cinematográfica cujas raízes estão na geografia assombrada do estado da Louisiana — desde Southern Comfort (1981), de Walter Hill, até ao recente vencedor dos Oscars, 12 Anos Escravo —, True Detective põe à prova o método de conhecimento e a visão moral do próprio espectador. É um brilhante exercício narrativo e um invulgar desafio simbólico.