quarta-feira, março 19, 2014

Norte/Sul: a guerra do futebol

GEORGE GROSZ
Autómatos Republicanos
1920
1. Em Portugal, um pensamento medíocre, tacanho e ressentido tem conseguido quase sempre desviar o essencial debate sobre a responsabilidade televisiva para uma condenação automática de qualquer gesto de distanciação crítica. De acordo com tal perspectiva, o crítico profissional é aquele que ignora as “tendências” do presente, querendo apenas “impor” a sua visão do mundo televisivo.

2. Desgraçadamente, há visões críticas cujo cepticismo tem sido confirmado — por vezes ampliado — pela evolução da televisão, dos seus valores narrativos e também da sua economia. Assim, por exemplo, sou um dos que, há cerca de três décadas, chamou a atenção para os efeitos perniciosos que resultariam da imposição das telenovelas como modelo dominante no audiovisual português. Não posso deixar de reconhecer que a realidade superou os meus piores pressentimentos: a formatação telenovelesca das produções (e das mentalidades) excluiu o cinema português das grandes decisões do audiovisual, escancarando as portas para a miséria anti-humanista do Big Brother e seus derivados.

3. Esta semana, regressou um fantasma futebolístico que eu, ingenuamente, julgava passado à reforma. Assim, a descomunal agitação televisiva em torno da vitória do Sporting sobre o Porto conseguiu reactivar um dos mais tristes princípios de (des)organização da nossa frágil identidade nacional: a competição entre os clubes grandes (incluindo também o Benfica) tende a esvaziar qualquer modelo de salutar rivalidade desportiva para ser descrita — e, por vezes, promovida — como uma clivagem insanável entre o Norte e o Sul.

4. Há outra maneira de dizer isto. Hoje em dia, a sobrecarga futebolística da comunicação televisiva envolve uma responsabilidade muito directa na configuração do tecido social português. Porquê? Porque tende a caracterizar esse tecido a partir das guerras medievais que minam o futebol.

5. Em termos sociais e no plano simbólico, quanto mais a relação Norte/Sul for induzida pelo futebol, maior é a desertificação do nosso mapa mental.