terça-feira, março 11, 2014

Que é um espectador de cinema?

Como (re)pensar as audiências cinematográficas? No contexto europeu, antes do mais... Um estudo assinado por Michael Gubbins deixa algumas pistas interessantes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Março).


A Cine-Regio é uma rede europeia que agrega entidades de 14 países envolvidas no apoio à produção e difusão cinematográfica (Portugal não está representado). Cumprindo a sua vocação de fórum de investigação e debate sobre a conjuntura industrial e comercial do cinema na Europa, acaba de publicar um relatório, assinado pelo analista Michael Gubbins (ex-editor da revista Screen International), sobre a evolução do mercado e as práticas do espectador comum. O título é sugestivo: “Audience in the Mind”. Podemos traduzi-lo como: “A pensar na audiência”. Ou ainda: “A pensar nos espectadores de cinema”.
Em termos esquemáticos, o trabalho de Gubbins parte do reconhecimento do impacto da revolução digital. Assim, por um lado, não tem sentido alimentar qualquer ressentimento “nostálgico” fixado no tempo em que os filmes em película constituíam uma clara maioria técnica e artística; por outro lado, importa reconhecer que a nova conjuntura exige um pensamento ágil de todas as formas de relação — desde a informação às especificidades da informação — com os espectadores que, melhor ou pior, já foram formados por uma cultura da Internet.
Ingmar Bergman
O relatório começa por chamar a atenção para a mudança da audiência acontecer através de um novo espaço de oferta, “fragmentado e, por vezes, contraditório”. Daí o desequilíbrio que se encontra em diversos “níveis de produção”, com ligações débeis entre “a indústria e a procura”, nessa medida podendo mesmo contrariar a “diversidade cultural”. Mais do que isso: tais problemas podem resultar de um mau trabalho de recolha e sistematização da “informação” sobre o consumo — Gubbins considera mesmo que há casos de “falta de transparência” nessa informação, em particular em zonas do universo do VOD (aluguer caseiro de filmes através de plataformas digitais). Tais problemas podem conduzir a crescentes “dificuldades do consumidor” na descoberta dos títulos mais variados, já que o favorecimento dos “blockbusters” prevalece em muitas formas de promoção (e também, acrescento eu, em alguns discursos jornalísticos).
A análise de Gubbins é suficientemente extensa para não alimentarmos a ilusão de a podermos sequer resumir neste espaço. Seja como for, nela encontramos um estímulo para resistirmos à estupidez demagógica que insiste em pensar (?) o mercado a partir da oposição entre filmes “intelectuais” e “populares”. Para nos ficarmos por um fenómeno sintomático, lembremos o impacto das chamadas reposições nos últimos dois anos em Portugal, desde o regresso de Vertigo, de Alfred Hitchcock, até ao relançamento de um pacote de filmes de Ingmar Bergman. Mesmo numa escala reduzida, o seu sucesso mostra que o conceito de espectador não pode ser reduzido aos valores do marketing dominante — neste século digital, a cinefilia passa também pela capacidade de superar a estreiteza cultural e comercial de tais valores.