No seu impecável classicismo, Nebraska, de Alexander Payne, revaloriza, sem formalismos, o preto e branco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Março), com o título 'Emoções de todas as cores'.
Por mais voltas que possamos dar, o facto de Nebraska ser um filme com imagens a preto e branco (notável trabalho do director de fotografia Phedon Papamichael!) surge como um elemento definidor da sua identidade. Por mim, gostaria de não favorecer qualquer moralismo formalista. De facto, rodar um filme a preto e branco não envolve, por si só, qualquer tipo de vantagem artística, muito menos de caução temática. O certo é que tal proposta surge num contexto em que, na linha da frente da promoção do cinema contemporâneo, encontramos sempre o mesmo tipo de “blockbusters” com heróis mais ou menos ruidosos a partir cenários mais ou menos digitais...
Enfim, evitemos outro tipo de maniqueísmo e lembremos que a história dos “blockbusters” contém, também ela, algumas contagiantes maravilhas. Acontece que, actualmente, somos bombardeados pela promoção de um cinema ancorado apenas na ostentação tecnológica, quer dizer, desprovido de memória.
O preto e branco do filme de Alexander Payne provém, justamente, de uma memória cinéfila que conhece e respeita o mais nobre classicismo de Hollywood, sabendo revisitá-lo e recriá-lo. Através do preto e branco, Payne conta a história amarga e doce de um velho apanhado na teia de ilusões de uma lotaria (pelo correio), refazendo os laços com muitos filmes que, já depois da idade de ouro daquele classicismo, encenaram as alegrias e dores de uma América profunda, para além de qualquer miragem de “glamour”. Nesta perspectiva, Nebraska prolonga o paradoxal encantamento de filmes a preto e branco como A Última Sessão (Peter Bogdanovich, 1971), Mala Noche (Gus Van Sant, 1985) ou Ed Wood (Tim Burton, 1994), celebrando um cinema que nunca menospreza a frondosa paleta de cores das emoções humanas.