quinta-feira, março 06, 2014

Bette Midler nos Oscars

A presença de Bette Midler nos Oscars envolveu o poder mais radical, porventura mais esquecido, das matérias cinematográficas: o de nos levarem a refazer as regras da organização do tempo — com o título 'Elogio de Bette Midler', este texto integrava o balanço da 86ª edição dos prémios da Academia de Hollywood, publicado no Diário de Notícias (4 Março).

Acredito que o cinema não é uma mera acumulação de “bons” e “maus” filmes (até porque, naturalmente, o “bom” filme de um espectador é o “mau” de outro...). Há também uma história paralela de cada espectador, feita daquilo que os filmes nos deram, porventura nos recusaram.
O tempo é a ambígua medida de todos esses sobressaltos, como pudemos verificar quando Bette Midler emergiu no palco do Dolby Theater a interpretar Wind Beneath My Wings, tema que gravou em 1988, para a comédia Beaches (título português: Eternamente Amigas), de Garry Marshall (com Barbara Hershey e a própria Midler nos papéis principais). A canção surgiu como complemento do tradicional quadro de homenagem aos que faleceram ao longo do último ano, conferindo-lhe uma inevitável dimensão de luto; ao mesmo tempo, a performance de Midler soube resgatar a amargura do momento, transfigurando-o em cerimónia de perturbante energia emocional.
Há, talvez, outra maneira de dizer tudo isto. Necessariamente marcados pelo artifício dos modelos televisivos, os Oscars parecem não ter um programa definido para lidar com algo que, inevitavelmente, vai crescendo ano após ano: o cinema como imenso património de pessoas, filmes e mitologias. Viu-se com a fraqueza simbólica da homenagem a Judy Garland. Contrariando tal problema, a presença de Midler foi tanto mais tocante quanto há nela um vulcão de talento que, depois do impacto de A Rosa (1979), de Mark Rydell, sobre o destino trágico de uma vedeta do rock, acabou por não gerar uma consistente carreira cinematográfica. Agora, com 68 anos, sentimos que tão imenso talento pode recomeçar, como se fosse a partir do zero. Para mim, os Oscars são também essa possibilidade de resistência à usura do tempo.