Remakes, sequelas, novas versões... Nada disso é proibido e, há que reconhecê-lo, por vezes dá origem a resultados interessantes. Mas que dizer da possibilidade de refazer (?) Os Pássaros, de Alfred Hitchcock? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Março), com o título 'Revisitando a memória de Hitchcock'.
Será que o leitor já ouviu falar de Diederik van Rooijen? No meu caso, devo dizer que só agora tomei conhecimento do seu nome. É um cineasta holandês, nascido em 1975, de cujos filmes, algures entre o “drama” e o “thriller”, não encontrei notícia no mercado português. A série televisiva Penoza (que, nos EUA, foi refeita como Red Widow) parece ser o seu trabalho de maior impacto. De resto, convenhamos que, até agora, o seu lugar no universo das imagens não parece justificar grande destaque.
Poderá o leitor perguntar de onde vem o misto de ironia e desconfiança que pressente nas minhas palavras? Não é verdade que nem sequer conheço o seu trabalho? Sem dúvida. O simples pragmatismo recomenda mesmo que não tiremos conclusões a partir de tão escassas informações. Devo, por isso, esclarecer que não consigo mostrar-me indiferente ao modo como o nome de Diederik van Rooijen entrou no meu espaço de informação. Que é como quem diz: ele vai realizar uma nova versão de Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock — será mesmo a sua estreia no universo de produção dos estúdios americanos. O que nos conduz, pelo menos, a um dado que conheço: Platinum Dunes, o estúdio que vai produzir a reinvenção (?) de Os Pássaros, tem-se especializado em remakes de títulos como Massacre no Texas ou Tartarugas Ninja, tendo na sua direcção Michael Bay, realizador da inenarrável série Transformers, exemplo dramaticamente esclarecedor das medíocres contaminações da narrativa cinematográfica pelos valores (?) dos mais banais jogos de vídeo.
DAPHNE DU MAURIER (1907-1989) |
Dizem as notícias que o novo filme apostará numa maior fidelidade à história de Daphne du Maurier, distanciando-se da versão “hitchcockiana”... Um pouco como esses telefilmes que apostam em “repor a verdade dos factos”, reduzindo todas as actividades humanas a relatórios de deve & haver, prós & contras, em que, para maior descanso das almas inquietas, será possível consagrar os “bons” e denegrir os “maus” — até já li artigos na imprensa americana, considerando que O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, se esquece de “mostrar” os pobre accionistas que foram enganados...
O que está em jogo não é, entenda-se, a legitimidade (incluindo a mais rudimentar possibilidade legal) de regressar à história de Daphne du Maurier, evocando de modo mais ou menos explícito a obra-prima de Hitchcock. O que importa discutir é a banal instrumentalização das memórias cinéfilas, sem esquecer que é possível lidar com tais memórias questionando de forma inventiva os princípios de “cópia” de muita arte pós-moderna — recorde-se, precisamente, a variação sobre o Psico (1960), de Hitchcock, que Gus Van Sant dirigiu em 1998. Apelando à mais singela sensatez, o mínimo que podemos desejar é que Os Pássaros, de Diederik van Rooijen, se venha a revelar um brilhante objecto de cinema, desmentindo, ponto por ponto, o cepticismo deste texto.